Desde logo adianto uma coisa: Sou, por princípio, contra a judicialização do acesso à saúde, onde liminares são obtidas no sentido de que se obrige ao Poder Público ofertar determinado serviço de saúde de forma individual. Meus motivos são os de sempre (interferência na discricionaridade, princípio da reserva do possível, etc.)
Mas sou feliz em constar que essa prática criou um senso de cidadania nas pessoas, e acredito que essa consequência supera os (eventuais) prejuízos advindos. Há um certo lado alienante nisso tudo, todavia: ao ser concedida liminar, oculta-se – tanto o cidadão quanto o magistrado, e ainda os outros atores envolvidos (Ministério Público, Defensoria, etc.) das práticas de governança a que lançam mão gestores.
Explico: quando se obriga uma Prefeitura a fornecer determinado medicamento, a “dar um jeito de internar” alguém (não importando que os leitos estejam todos ocupados), etc., junta-se em um mesmo balaio tanto o mau gestor, que escora-se no argumento genérico da insuficiência de recursos, quanto o gestor que, não obstante ter adotado todos os meios orçamentários possíveis para cumprir com seu mister, ainda não consegue oferecer um serviço de qualidade (justamente pelo, agora legítimo, argumento da insuficiência de recursos).
Mas não era nem sobre isso que gostaria de escrever. O que quero dizer e propor é algo mais inovador: vejamos: se um determinado juiz concede certa liminar, com cominação de multa diária em caso de descumprimento, para que o Poder Executivo tire da cartola determinada prestação de serviço/fornecimento de medicamento, por que razão o Poder Judiciário não aplica multas a si mesmo quando nega ao cidadão o serviço de qualidade que, por status de direito fundamental a que se eleva o acesso a justiça na Constituição Federal, deveria prestar?
Vamos esclarecer, antes que me chamem de idiota (justo, mas pelo motivo errado): sei que a multa diária aqui não é decorrente da não prestação do serviço, mas pelo descumprimento da ordem judicial.
No entanto, não há como se fechar os olhos para certa dose de hipocrisia quando um magistrado, às vezes com indisfarçado ar professoral, chega a querer dar aulas de gestão ao administrador público ao conceder determinada liminar, mas que, quando se trata de despachar os processos em dia, de apreciar liminares no prazo legal, de chegar no horário marcado para as audiências, etc., não parece ter o mesmo “zelo administrativo”?
Proponho, assim, que o Ministério Público, ou a Defensoria, ou a OAB, proponham Ações Civis Públicas, em cada Estado da Federação, para que o Poder Judiciário passe a respeitar prazos, sob pena de multa. Para que os magistrados observem a duração razoável do processo, sob pena de multa. Para que as audiências aconteçam no horário marcado, sob pena de multa.
Minha proposta: que seja judicializado o acesso à justiça!
Antes que se argumente que o direito à vida teria precedência sobre o acesso a justiça, digo logo que as liminares naquele caso nãoo são concedidas em razão de uma excepcionalidade do direito à vida, mas exatamente pela contemplação deste como direito fundamental.
Pois bem: se o Poder Judiciário, em sua função de administrar a Justiça, não consegue entregar o serviço prometido pela Constituição, que seja também objeto da mesma ação afirmativa de direitos a que é submetido o Poder Executivo.
Quando um juiz se dá ao trabalho de escrever em sua sentença que esta não foi cumprida dentro do prazo em razão do excesso de trabalho (o que acho que é decente, pelo caráter de prestação de contas que representa), legitima que o mesmo Poder Executivo se escuse de não cumprir 100% de tudo que se espera da Administração Pública. Simples assim.
E nesse viés moralizante, para que não se diga que não falei das flores, que advogados, no processo penal, que retém autos indefinidamente, contribuindo quer para a impunidade, quer para o déficit de produção do judiciário, sejam igualmente multados. Embora isso seja possível juridicamente, não é comum que advogado seja punido. A OAB, infelizmente, ainda está a anos-luz de entregar uma disciplina devida à classe. Advogados que estimulam a litigância de má-fé e a litigância frívola (frivolous litigation, na doutrina americana) deveriam ser igualmente punidos.
O problema, penso eu, é que se adotam pesos e medidas diferentes: quando o caso é de não cumprimento por parte do Poder Executivo, a atitude é a de “dê seu jeito”. Quando a lentidão é com o Judiciário, toma-se a discutir reformas. Agora estamos prestes a uma restrição no uso de recursos que, na prática, torna o cidadão refém de juízes de primeira instância, que, muitas vezes em início de carreira, dando atenção a duas, três comarcas atoladas de processos, acaba decidindo equivocadamente (sem nenhum demérito, porque juiz algum é infalível, como, de resto, ninguém é). Em vez de se discutir melhora no aparelho judiciário, em eficiência de produtividade, etc., vem-se com essas reformas.
Mas, enfim, resta aqui a contradição entre um Estado de Bem-Estar Social perfeito em sua idealização, mas de resto inexistente.
Tenho que citar, aqui, uma frase de um competente representante do MPF, que me disse certa vez que somos dotados de um “método refinado de negar direitos, concedendo-os”.