Há uma entrevista do professor de filosofia Clóvis de Barros Filho para o Jô Soares na qual ele define a felicidade como aquilo que você gostaria que durasse para sempre. Em sua ilustração, usa o episódio do sujeito que, morto de fome, pede uma pamonha e, ainda inebriado, pede uma outra que, ante a fome agora saciada, já não lhe proporciona mais o mesmo prazer.
Não sei se é isso que acontece comigo ao comer ovos fritos hoje em dia. Talvez seja mais em razão das experiências que os ovos fritos, ou ovos estrelados, como chamavam-nos a minha avó, me fazem recordar.
Ovos fritos, ou estrelados, é o que gosto de comer aos sábados, no café da manhã. Porém, por mais que os coma, não consigo sentir neles o sabor que tinham quando morava no Brasil. Não sei se é o pão daqui que não combina muito – é quase sempre doce demais – ou não sei se é o fato de que, agora, são apenas ovos fritos, ou estrelados, desacompanhados de experiências que o tempo não apaga mas que vêm sempre à mente.
Ovos fritos os comia várias vezes por semana, até que a professora de biologia, ao saber disso, recomendou-me que os comesse apenas uma ou duas vezes por semana, em razão do colesterol. Comia ovos fritos, ou estrelados, com um milk shake de mamão que aprendi a fazer com a mãe de um colega, às 5:30 da manhã, antes de ir pra escola, com medo de acordar meu avô com o barulho do liquidificador.
Aliás, mais tarde, um outro colega me disse que, nos seus tempos de comunista, quando o comunismo era clandestino, em um desses acampamentos que tinham, um companheiro pediu à cozinheira que fritasse, ou estrelasse, oito ovos para ele. Ao ver a cena, um outro companheiro, médico, tentou-lhe dissuadir: “Companheiro, o organismo não metaboliza isso com facilidade, não é bom para a sua saúde.”, ao que o guloso ovófago respondeu: “Companheiro, sai pra lá com sua conversa pequeno-burguesa e me deixa comer meus ovos!”.
Ovos fritos, ou estrelados, comiam-se com as mãos, sem garfo nem faca, usando-se o pão como talher. Nunca gostei de pão com ovo frito dentro – o pedaço de pão tem que ser desprendido com o tamanho ideal para abocanhar a quantidade certa de ovo. Como comia aquele amigo engenheiro que consertava rádios em cuja casa aprendi tanto sobre radioamadorismo – parecia que ovos fritos comidos assim eram a melhor iguaria que se poderia comer. E tinha que ser o pão da Padaria Maravilhosa, aquele pão que se esfarelava todo ao abrir, onde meu avô comprou por décadas os “pães de sal” que alimentaram três gerações dos Medeiros.
Ou as tentativas de fazê-lo ao gosto do freguês: ao visitar um primo, fui fazer o café da manhã e ofereci fritar, ou estrelar, alguns ovos, e perguntei se aceitava: “depende”, disse ele. “Consegue fazer sem quebrar a gema, de forma que fique o ovo no formato ideal?”. Essa passou a ser uma daquelas coisas que eu passaria a vida tentando, com limitado sucesso. Lembro que nem o Maguila conseguiu quando foi convidado certa vez a cozinhar algo no programa de Ana Maria Braga, aliás, o único episódio que me recordo ter assistido e gostado. Ele só sabia fazer ovo frito e, como eu, mal.
Todas as outras formas de comer ovos fritos, isto é, estrelados, que não fossem assim, na mão e com pão como talher, foram apenas meros desvios, ainda que boas experiências: como aquela que o vizinho chinês me ensinou como sendo iguaria típica: bate-se o ovo cru, frita-se, joga-se cebolinha e come-se mergulhando-o no molho de soja, com palitinho. Ou sob o cuscuz, como um dia me mostrou o nobre Notório Norberto. Ou o clássico ovo-arroz-farinha, quando se está com fome mas não se quer comer nada. É o curinga do almoço do jovem-preguiçoso que todos fomos um dia.
Outra forma de comer ovo – não sei se frito ou cozido – é o descrito como refeição tipo PF típica de Belo Horizonte no romance “Hilda Furação, de Roberto Drummond: coal: cachaça, ovo, arroz e linguiça.
Lembro quando o tio me oferecia ao lhe visitar: “Fulaaaana, frita uns ovos para Francinho…”. Ou quando visitava alguém que nos hospedou em Itabuna, que nos ofereceu ovos no café da manhã. Ou quando aprendi que se podia fritar ovos na manteiga, mas nunca me acostumei à idéia; sempre preferi o bom e velho olho de soja de guerra.
Não, não sei se é o pão daqui que não combina, ou o se é o sal daqui que não salga. Ou se não é nada disso: talvez o mundo dos ovos fritos, digo, estrelados, da minha infância já não exista.
Como também já não existe o mundo em que acordar aos domingos significava correr para a cozinha para ver se a tia já estava a fazer lasanha, a fim de “roubar” um pouco do molho para colocar em um pão francês com presunto e comer acompanhado de uma garrafa Pepsi de vidro. Mas esse é assunto para outro post.
Sem o mesmo sabor, comer ovos fritos, ou estrelados, talvez seja só uma tentativa de reviver sabores e vivências passadas, e por isso mesmo não se consegue deles extrair algo além das boas memórias e um pouco mais de colesterol.