Como advogado, tenho que engolir alguns sapos. Às vezes ganhamos, às vezes perdermos.
Alguns processos que perdemos são mais difíceis de engolir do que outros. Não pelo seu valor econômico, mas sim pela injustiça que a sucumbência processual significa para quem dela é vítima.
Algo que sempre me chamou a atenção desde que li o livro “O Mundo na Corda Bamba” (One World, ready or not), foi que devemos começar a nos preocupar com a origem dos nossos produtos. Ou, melhor dizendo: quem produz nossas roupas de grife, nossa comida, nossos computadores? Será que usam o trabalho infantil? Será que fazem horas extras? Será que ganham o suficiente para viver?
Conheçam Luciana (nome fictício). Por morar distante da fábrica do grupo DASS (que produz artigos das marcas Fila, TryOn, Dilly e Umbro) em Vitória da Conquista, Bahia, acorda cedo e pega o ônibus todos os dias. Ganha salário mínimo, o que significa que Luciana nunca vai comprar um tênis de uma das marcas que ajuda a confeccionar. Isso sem falar nas condições de trabalho, péssimas, segundo já divulgado na imprensa. Aliás, a indústria calçadista é assim – em Itapetinga, a Azaléia foi proibida pela justiça de usar determinada máquina que já causou amputações e outras seqüelas aos trabalhadores ali.
Um belo dia, Luciana recebe um aviso de demissão por justa causa. O motivo? Luciana utilizara o vale-transporte fora do horário de trabalho. Não mais que CINCO vezes. Algumas dessas vezes, Luciana foi levar seu filho ao médico. Acompanhei Luciana em sua reclamação trabalhista. Sua chefe confirmou, em audiência, que Luciana, mesmo tendo utilizado o vale-transporte fora do horário de trabalho, continuou a usar o transporte público para ir para a fábrica. Isso quer dizer que Luciana compensou o uso do vale-transporte feito em outro horário com dinheiro do próprio bolso, diferente daquelas pessoas que vendem o vale-transporte para conseguir um dinheiro extra.
Mesmo assim, a justa causa prevaleceu. Luciana não iria ganhar muito dinheiro, mas até isso o juiz lhe negou. Certa estava a empresa, já que a lei prevê que o mau uso do vale-transporte poderá ensejar justa causa. Embora a jurisprudência fosse farta no sentido de que a justa causa deve ser proporcional à falta, o juiz não quis nem saber: abençoou a rigidez da empresa.
Infelizmente, o poder estabelecido é assim com os trabalhadores: a Luciana, nega-lhe uma pífia indenização (será que chegaria a R$1.000,00?). À Dilly, incentivos fiscais para implantação da fábrica. Vendem o Estado para exploração do trabalho.
O pior: como explicar a Luciana que outro juiz foi mais razoável, e anulou a justa causa de uma colega de trabalho despedida pela mesma razão, segundo Luciana?
Enfim, como ao advogado, além de lutar, resta recorrer, recorri. Os ouvidos do Tribunal foram moucos. Apelei a Brasília. Negaram o seguimento ao recurso (grande novidade). Agravo. Nessa, vamos morrer brigando.
A insensibilidade com o trabalhador é gritante. A DASS, cujo faturamento deve ser enorme, economizou seus centavos. Luciana, desempregada, aguardou em vão que lhe fizessem justiça. Infelizmente, os que lhe negaram justiça não estavam muito preocupados em… fazer justiça, talvez usando sapatos da Dilly adquiridos com bons salários, fabricados com o suor de gente como Luciana, sapatos que Luciana não podia e não pode comprar.
24/08/2010 em 16:31
Acompanhei essa onda de demissões por “uso indevido de vale-transporte” da DASS e compartilho da mesma indignação.
O que mais me deixa perplexo é a velharia do pensamento da Justiça. Flexibilizam direitos, revogam “tacitamente” direitos trabalhistas constantes da CLT, “esquecem” de cumprir a Convenção 158 da OIT para “punir” a despedida arbitrária com a honrosa multa de 40% sobre o FGTS em substituição; mas, quando se trata de aplicar a proporcionalidade e interpretar a favor do trabalhador, seguem estritamente um texto passado por decreto na época da ditadura, fechando os olhos para a situação do trabalhador e sua fragilidade.
Não tenho conhecimento de um único caso que envolvesse a DASS em que a justa causa foi anulada.