Eu entendo a desconfiança que o brasileiro tem em relação a tudo. Somos roubados a todo momento – roubados por nossos políticos, por nossos empresários, por nossos governantes – até por ladrões somos roubados.
Reconheço a desconfiança que o cidadão teve em relação a ministros do STF que votaram de forma mais favorável aos réus no processo do mensalão – principalmente em relação a Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Este último, por ter um passado de serviços prestados ao governo lulista. O primeiro por, na visão de alguns, ter agido de forma proposital em defesa dos réus (sem fazerem o devido contraponto ao Joaquim Barbosa que, se adotada a mesma medida, teria escolhido o lado da acusação).
Por ser técnico do direito e portanto familiarizado com a dialética jurídica, em que toda questão costuma ter dois ângulos, dois lados e dois interesses, essa emotização de um processo judicial sempre me pareceu descabida. Não que eu ignore a sujeição que certos julgadores tem a ideologias, premissas ou interesses pessoais. Mas é que sinto ser um desserviço à evolução do direito a análise de um julgamento segundo o suposto interesse íntimo dos julgadores, quando o serviço deveria ser justamente a exposição dos argumentos jurídicos, a fim de que o confronto seja claramente exposto. Pouco me importa o motivo pelo qual um ministro decide A ou B. Importa-me, sim, as razões jurídicas da decisão. Acredito que, assim, as pessoas poderiam ter opiniões muito menos apaixonadas e mais responsáveis sobre processos judiciais.
(durante anos, ouvi de clientes que perderam alguma causa que o juiz provavelmente havia sido comprado, que servidor de cartório tinha sido comprado, etc… Isso quando não eram os próprios advogados contrários quem diziam essas coisas aos seus clientes quando uma causa era perdida.)
Mas o que me chama a atenção até aqui é que, na imprensa, só há (com exceções) espaço para os argumentos demagógicos ou políticos. Boa parte dos artigos da grande mídia elabora um sofisma altamente perigoso para a democracia brasileira e para a evolução do nosso sistema judiciário: esse sofisma consiste em vincular a aceitação dos recursos (embargos infringentes) a uma eventual desconsideração do STF à opinião pública, ou ao favorecimento da impunidade, ou mesmo (novamente) ao fato de estarem os ministros “comprados”. Ou seja: o STF, segundo esses articulistas, deveria ser uma espécie de coliseu e decidir ao sabor do grito da platéia, ou, no caso, das ruas.
O grito das ruas deve ser, sim, ouvido e respeitado pelo judiciário, não no mérito de suas decisões, mas nos meios. No respeito ao devido processo legal. Nos julgamentos céleres. Na boa fundamentação de suas decisões. O judiciário peitado pela comoção faz tudo, menos justiça.
Mas o que me incomodou mesmo, mais do que isso, é que no caso dos tais embargos infringentes, não vi quase uma linha sequer a respeito da questão técnica. Para os articulistas, a questão resume em aceitá-los e dar prova de desconexão do STF com a opinião pública, ou recusá-los e mostrar que são respeitáveis. Não há meio termo. Às favas com o direito, com as leis.
Algumas argumentações ultrapassam a boa-fé. Vi, no Facebook, alguém reclamar que os ministros foram nomeados por Lula. Mas, estranhamente, não vi a foto de Joaquim Barbosa na lista, como se não tivesse o “ministro-algoz” dos réus sido nomeado pelo mesmo Lula. Porque é fácil manipular os fatos sem buscar fazer uma análise desapaixonada das coisas. Na fogueira da revolta (sim, nem sempre é má-fé, estamos todos revoltados com a corrupção), as pessoas jogam quem estiver pela frente. Por exemplo: a ministra Rosa Weber votou no mesmo sentido de Joaquim Barbosa em quase todas as questões até agora (exceto pelo crime de formação de quadrilha). No entanto, ter votado contra, agora, a transforma em vilã. O mesmo será o caso do Min. Celso de Mello, caso vote pela aceitação dos tais recursos.
Às favas com o direito, repetem silenciosamente. O que se quer ver é condenação, ainda que dispensado o devido processo legal. As pessoas preferem, estranhamente, um tribunal que condene por ouvir a opinião pública, ainda que o direito seja violado, do que a aplicação correta das leis, ainda que isso signifique impunidade. Veja-se bem: eu não estou aqui afirmando que os embargos infringentes são ou não cabíveis. Mas diante da análise de todos, que não levam em conta o argumento jurídico, parece ser essa a escolha. E ela é mais que lamentável – é perigosa. Um judiciário sem independência ou serenidade significa que julgará as pessoas ao sabor do vento e não das leis. E uma opinião pública desinformada significará a enternização da desconexão que temos de nossas instituições. Como não as compreendemos, tentamos influenciá-las pelo grito. Mas nosso grito deveria ser por justiça, e não por condenação automática.
Engraçado: quando Breivik matou 77 pessoas, eu não vi protestos aqui para que ele fosse condenado à pena máxima. Ou que fosse morto. Ou que fosse linchado. Ou que fosse declarado inimputável. O que se pedia era justiça e que as leis fossem aplicadas com o rigor que devem ser aplicadas.
No Brasil, ninguém se pergunta quais são as leis. Pouco que se importa. As pessoas parecem preferir que, se forem favoráveis aos réus do mensalão, que sejam colocadas para debaixo do tapete. Não importam as leis. Faz sentido em um país em que temos uma relação tão ambígua com as leis: desconfiamos delas. Quando desconfiamos que foram feitas para proteger quem não merece, reclamamos delas. Quando poderosos não as cumprem, dizemos que ninguém as respeita.
Acho que nosso problema é encararmos a lei como barreira pra tudo, e não como pilar de uma sociedade civilizada. Portanto, preferimos o linchamento, o coliseu.
Vamos mal assim.
UPDATE (14.09.2013): Felizmente, já surgem artigos que abordam a questão com menos paixão e demonstrando que a questão é, de fato, controversa. Na Folha de S. Paulo de hoje, dois artigos, um contra e um a favor à admissibilidade dos embargos infringentes. Além disso, teve esse outro aqui que achei interessante.
UPDATE 2 (14.09.2013): Escrevi outro post sobre o assunto, motivado pela descoberta de que os tais embargos não foram revogados de propósito.
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