Infelizmente, o tal Brasil cordial, se existiu um dia, agora não existe mais. As discussões na internet sobre política estão um lixo só. Mas não sei se isso é um fenômeno novo – um amigo muito sagaz dia desses me fez pensar que no fundo tudo é como sempre foi, e aí me lembrei que a moda na década de 80 era chamar direitista de alienado. Pois bem, a moda agora é chamar esquerdista de classe média de membro da chamada esquerda caviar, em um raciocínio pra lá de cínico, como se pra querer distribuição de renda e dignidade o sujeito precise passar fome – caso contrário seus anseios não seriam legítimos.
Mas o que o caviar tem a ver com as calças, gente? A tal ova de esturjão aqui na Noruega é mais barata (em sua forma mais popular, em pasta) do que maionese. Mas há mais entre esquerda, caviar, Noruega e Brasil e este que vos escreve do que possa parecer.
É que o imigrante brasileiro, quando esquerdista, além ser taxado de “esquerda caviar”, pois teoricamente estaria no melhor lugar do mundo e, assim, não poderia se arvorar como defensor dos mais desfavorecidos, também sofre porque é acusado de não ter legitimidade para falar do Brasil por estar longe. Acho os dois argumentos de uma pobreza de espírito enorme, mas vamos lá, que brasileiro que é brasileiro nunca foge de uma boa conversa ou de uma promissora porfia… 🙂
Acho que o argumento de esquerda caviar é pobre, porque é ad hominem, e porque não tem duas vias. Eu até poderia aceitá-lo (com reservas), se alguma pessoa miserável e faminta viesse me acusar de presumir saber o que é melhor pra ele. Mas não aceito a crítica, independente do seu conteúdo, quando ela provém de alguém que, geralmente, possui melhores condições do que eu. É dizer: do (neo)liberal que tem casa, comida, roupa lavada e milhas no cartão que vem me dizer que o mercado há de trazer comida para o miserável faminto, como se ele, o meu amigo leitor de Olavo de Carvalho, soubesse lá o que é isso.
Tem um outro aspecto: eu não posso defender políticas públicas de inclusão porque em tese não precisaria tanto delas (afinal eu tenho um iPhone, não é? :). Tudo bem, mas quando as pessoas precisam dessas políticas e votam na Dilma para preserva-las, aí é porque o voto delas é comprado, né? Aham, senta lá, Cláudia… Não sei se por cacoete da profissão, mas a gente deve sempre tentar enxergar o outro lado para entender e respeitar melhor as diferenças e tentar medir o alcance do que dizemos. Se eu digo que a pessoa que tem conforto não pode estar dando palpite na questão social, eu tenho que forçosamente admitir que eu, favorecido pela sorte, também não posso dar palpite, e, ao mesmo tempo, que a pessoa que não tem tanto conforto, essa sim, teria legitimidade para dizer e escolher aquilo que lhe é mais sensato. Parece claro? Pois é, mas tem gente que ainda chama os outros de esquerda caviar e esnoba o voto de quem precisa de programas sociais como se fosse de menor estirpe ou qualidade. Noves fora a arrogância de achar que seu voto é mais qualificado do que o dos outros. Mais um pouco e vão passar a defender o voto só pra quem tem nível superior – ou mesmo como era antigamente: voto, só pra dono de engenho…
Mas há um outro argumento estúpido, como eu mencionei: “Ah, meu caro, mas você mora longe, é por isso que você vota no PT, não sabe como as coisas aqui estão”, como se eu não tivesse apenas 3 anos de exílio, como se não lesse jornais ou visitasse o país de quando em quando. Mas esse argumento é ainda mais ridículo do que o primeiro: primeiro, porque veicula a idéia forçosa de que a pessoa provavelmente reduziu sua capacidade de análise porque emigrou, quando, imagino eu, quem imigra, via de regra, aprende mais sobre si mesmo e sobre suas origens do que quem nunca o fez.
Mas, no meu caso, a coisa ainda é, ironicamente, mais engraçada – não que eu acho que o argumento (esse de mora-fora-fica-quiet0) tenha legitimidade, mas, ainda que tivesse, em boa parte dos casos ele provaria a tese contrária. Quer ver?
A pessoa acha que o imigrante vive no luxo, que reclama de barriga cheia, e que fala da miséria dos outros bafejando um charuto cubano. É falácia. Como imigrante, tive a sorte de me mudar pra um país onde quase todos usam transporte público, vivo em um apartamento com menos da metade do tamanho do que morava no Brasil, pago uns 30-40% a mais de impostos, e não deixei de ser de esquerda. Pelo contrário: percebi que não quero uma humanidade onde muitos tenham Mercedes, mas que todos tenham dignidade e chance. No Brasil, há esse ranço de que, se a pessoa for privilegiada, deve manter o privilégio e não se doer por quem não os tenha. Foi assim com a lei das empregadas domésticas, onde a pergunta “quem vai passar minha roupa?” pareceu ter mais importância do que “é justo fazer alguém trabalhar sem hora extra por 12, 13 horas ao dia?”. Assim, a postura da direita é: “fica quieto, você não pode ser de esquerda, você tem tudo”.
Eu era privilegiado no Brasil, muito embora provavelmente deveria ter o mesmo padrão de vida de um norueguês médio e proletário. No entanto, tão pouco no Brasil era sinônimo de privilégio (um dia fui pegar um ônibus e um conhecido não conseguiu disfarçar a pena por ver a mim, jovem “talentoso”, ter que pegar transporte público). Como dizia um querido professor de história, “temos que socializar a riqueza, e não a pobreza”. Concordo: penso que o mundo seria bem melhor se todos tivéssemos as mesmas oportunidades, as mesmas chances; que enxergássemos que as necessidades que não temos, outros as têm de monte, e que desejássemos para os outros aquilo que temos, – inclusive, conforme for o caso, o tal do caviar… 😉