Eu pensava que havia perdido a vontade de sair viajando. Afinal de contas, eu nunca fui lá tão fã de lugares como sou de pessoas. Além do mais, a burocracia para viajar de avião – controles de segurança, espera, bagagem extraviada – noves fora não ser ecologicamente bom, aliado a um crescente medo de turbulências, me desencoraja um pouco.
Mas nessa semana fui a Barcelona por razões de trabalho. Nunca havia ido a Barcelona, e pra ser sincero a Espanha deixou de ser um país que me atrai, apesar de conhecer pessoas fantásticas de lá – tudo por causa do tratamento rude que sempre tive em Barajas, Madrí.
Fiquei encantado com a cidade, ou melhor, com a excelente impressão que tive das pessoas em Barcelona. Corteses desde o aeroporto. Sorridentes em todos os lugares. Muito diferente da imagem que eu guardava de Madrí.
Mas o que me toca na vida são aqueles momentos efêmeros, que quase sempre são bons porque efêmeros, que perderiam a magia se esticados. Como quando vi aquela moça cantando no metrô…
Entrou acompanhada com um rapaz que puxava uma caixa de som, e começou a cantar. Gostei que alguém cantasse no metrô, acostumado que estou com o silêncio dos trens de Oslo e com certa nostalgia de uma bagunça, de uma desordem. Estranho eu ter gostado, eu que normalmente fico constrangido ao me pedirem dinheiro, e alguém cantando no metrô vai dar nisso… Mas gostei, pronto.
Ela chamou a minha atenção. Tinha cabelos pretos – ou será vermelhos? Cantou “Je veux”, de Zaz, que fala justamente em não querer coisas de luxo. Parecia mais autêntica ela cantar essa música do que a própria Zaz. Viver da arte, imagino, quase nunca é fácil.
Eu, ali, vindo de uma conferência onde se falava de modelos de negócio, virtualização e nuvens – não as do céu, mas as dos computadores – fui apresentado involuntariamente àquela moça que cantava tão bem que me fez feliz no metrô quase lotado. E eu não conseguia parar de olhar para ela, que cantava, sorria, e rodava pelo trem.
E então ela passou o chapéu. E detestei não ter moedas, e detestei a minha vergonha de não tirar uma cédula do bolso, com vergonha de alguém achar que seria demasiado, com receio de estar exagerando, não sei.
Saí com a moça na cabeça e a vergonha na alma.
Fui ao hotel, deixei a pesada mochila no quarto, e fui comer algo simples, que essas conferências são cheias de comida. E Barcelona, que de alguma forma me remete ao Brasil, tem alguns tesouros escondidos. Fui a um desses comer um tira gosto qualquer, tomar uma cervejinha, fingir que estava na Kina de Masú, boteco da minha Conquista.
Saí do boteco, e já havia tomado rumo para o hotel, quando avisto a moça do metrô. Sim, era ela. Fumava, e conversava com alguém. Eu não pensei – será a cerveja, ou será que foi apenas algum bom-senso, magia ou loucura que ainda restava – e fui até ela, já com uma cédula na mão, e em portunhol claro e escorreito perguntei: “posso te dizer uma coisa?”. Ela, surpresa, disse sim – e eu, com o dinheiro na mão e o coração na boca disse que ela estava maravilhosa naquele metrô, que me fizera sorrir, e que eu gostaria muito de ter contribuído com ela, mas ela se foi sem que eu o tivesse feito, e gostaria de entregar isso, a cédula, a ela.
Ela me olhava meio sem entender – foi meu portunhol? Foi a cena inesperada? Mas não sei, ela de repente se deu conta, e me deu um longo e gostoso abraço. Eu disse muito obrigado, ela, imagina, obrigado eu. E fui para o hotel.
Senhores, nada há igual à vida quando ela permite desfazer a covardia feita e fazer a loucura não-feita.
No avião de volta, viajo ao lado de uma moça muçulmana que vinha pela primeira vez à Noruega. Conversamos sobre tudo: incrível o que se pode conversar em duas horas de vôo. Houve até aquele momento do tipo “Tudo o que você queria saber de uma garota muçulmana mas tem vergonha de perguntar”.
Fiquei um pouco triste quando discutimos religião. Eu disse que era cristão, mas que tenho poucas certezas. Ela, de que o Islã não estaria sujeito a interpretações, que o Islã seria a única religião não-subjetiva.
Nesse momento ganhei a certeza que precisava: não se pode ter fé sem duvidar um pouco. Ela, um doce de pessoa, dizia que os extremistas não seriam verdadeiros muçulmanos. Acho que ela não percebeu o paradoxo de que eles provavelmente diriam o mesmo dela.
Fiquei feliz de ter conversado muito com ela e com sua amiga, mas de certa forma triste – entreguei um pouco da minha fé à dúvida, mas gostaria de ter mais fé. Mas gostaria que ela talvez tivesse um pouco da minha dúvida, porque a certeza dela significa a certeza que nos danamos todos nós outros. Não é apavorante que alguém pense que todo mundo que não tem a mesma fé vai se lascar um dia? Como alguém pode ter essa certeza?
Enfim, acho que quero viajar mais. Vai ver vejo a moça do metrô novamente, ou a moça muçulmana que ouvia Maria Gadú, ou alguma outra pessoa a me falar de fé ou que simplesmente cante…