A desgraça maior do Brasil é a nossa falta de confiança em nossas instituições, que não se dão mesmo a confiar. Aliás, instituições, se não são confiáveis, não servem mesmo para muita coisa. A sociedade precisa de instituições estáveis a fim de que haja um sentimento de justiça.
Nós não vamos confiar jamais em nossas instituições. Não participamos da escolha de boa parte dos seus ocupantes (não de forma direta), não nos envolvemos com elas e, pior, não nos identificamos com ela. Assim, outorgamos às instituições um cheque em branco e, quando não correspondem às nossas expectativas, esquecemos da nossa própria responsabilidade.
Eu quero falar da questão da redução da maioridade penal. Há um movimento pernicioso buscando reduzir a maioridade penal para 16 anos, sob o cínico argumento de que menores de 18 e maiores de 16 já teriam capacidade para entender seus atos.
Antes de entrar no tema diretamente, vou relatar uma experiência que, ao meu ver, demonstra como nossa chocante falta de fé nas nossas instituições molda nosso raciocínio e, infelizmente, nos estraga, nos faz perder a vontade de lutar por melhores governos, melhores quadros na administração pública, etc.
Eu vim morar na Noruega apenas menos de um mês após o ataque terrorista perpetrado em Oslo no dia 22 de julho de 2011. Embora eu sempre tenha sido, por convicção, a favor da aplicação dos direitos e garantias de qualquer réu, me chamava a atenção que o acusado tinha liberdades processuais que são estranhas no Brasil: podia ele próprio fazer apartes, protestar, fazer suas alegações finais – tudo aquilo que praticamente inexiste no direito processual penal brasileiro. Eu me perguntava: “gente, não será demais não? Ele matou 77 pessoas, e ainda é tratado com tanta civilidade?”. Eu confesso, com alguma vergonha, que cheguei a desejar que ele fosse julgado no Brasil, onde provavelmente teria sido morto por algum justiceiro que diria “Direitos humanos são para humanos direitos” ou outros motes típicos.
Caí na besteira de discutir essa opinião minha – incompatível com meus próprios valores – com outros noruegueses. A morte de 77 pessoas (a maioria adolescentes), e a possibilidade de uma pena máxima de 20 anos me revoltavam. Surpreendentemente, quase todos os noruegueses estranhavam que eu, ainda mais sendo advogado, poderia defender coisas tão retrógradas. Quase todos os noruegueses entrevistados diziam que confiavam em seu sistema jurídico, em suas instituições, e era importante não abrir exceções. Ou seja: que vingança não faz parte de uma sociedade civilizada, ainda que traumatizada por essa violência.
Alguns meses depois, fui a uma conferência sobre acesso à justiça. O palestrante foi justamente o advogado do terrorista, Geir Lippestad. Ele falou algo que me impressionou (aqui narrado possivelmente com algumas imprecisões, já que o evento tem algum tempo e foi em norueguês): disse que, ao chamar um taxi, o motorista, de origem estrangeira, o reconheceu e perguntou se ele era realmente o advogado do célebre julgamento. Ele, com certo receio, respondeu que sim. O motorista do taxi o parabenizou pelo bom trabalho, e é importante que as instituições funcionem.
Isso me causou uma comoção, porque perdemos completamente a fé nas instituições e, tal como uma mosca presa em uma garrafa, vivemos a nos bater procurando soluções casuísticas para tudo, quando nosso problema é simplesmente a falência das instituições. Queremos respostas fáceis que não impliquem em sacrifícios.
Vejamos o caso da maioridade penal: segundo um relatório da Unicef (encontrado aqui: http://www.mpdft.gov.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/Diversos/estudo_idade_penal_completo.pdf), quase nenhum país civilizado impõe a responsabilidade penal a menores de 18 anos. As exceções são Reino Unido, Estados Unidos e Rússia. Os Estados Unidos, segundo o relatório, estão tendo altos índices de reincidência justamente por causa dessa política.
Ou seja: o cinismo está justamente em uma suposta abstração do debate, em uma alegada distinção entre causas sociais do crime e livre compreensão da atitude criminosa, como se esta última estivesse presente em jovens de 16 e 17 anos.
A grande questão é que, se crimes contra a vida praticados por menores são a minoria no Brasil e virtualmente inexistentes em países mais civilizados, o que se pode concluir? Que nossos jovens são inevitavelmente mais perversos do que os do resto do mundo, ou que a sociedade falha enormemente com o seu dever de proporcionar uma existência digna que lhes permita melhores escolhas?
A resposta cínica, racista, preconceituosa e revanchista é a de que os jovens brasileiros são mais perversos do que os do resto do planeta. É como se pegássemos os meninos africanos recrutados (frequentemente à força) para formarem exércitos ou milícias e, após os crimes cometidos, disséssemos que foram responsáveis por isso. O cinismo do argumento, amparado em uma suposta ânsia por justiça, é nada menos do que o sentimento de vingança com doses cavalares de omissão. Onde está o desejo de justiça diante do tratamento de presos como animais? Onde está o desejo de justiça diante da perspectiva de entregarem adolescentes ao caminho da reincidência? Onde está o desejo de justiça ao se verificar que 40% das vítimas de homicídio são justamente menores de 18 anos (segundo o relatório mencionado)?
Quem advoga pela redução da maioridade penal deveria, assim, pedir a revogação do ECA também, já que este importante código tem por objetivo proteger e ressocializar jovens infratores. Que adolescentes não tenham mais proteção do Estado, já que nos declaramos incapazes de fazê-lo e preferimos agora exterminá-los. Já não basta roubá-los de uma vida digna e das oportunidades de desenvolvimento completo – agora vamos alijá-los também de direitos.
Não confiamos em nossas leis – ainda que os crimes tenham punição maior que no resto do mundo. Não confiamos nos nossos centros de ressocialização. Não confiamos em nossas penitenciárias como locais de regeneração. Claro, no desespero de nosso fracasso, queremos a saída fácil que é a edição de lei. Mesmo sabendo que isso significará entregar adolescentes de vez para o crime. Mas isso não é o pior: o pior é admitir que o tal jeitinho brasileiro – o de escolher saídas fáceis para que não se enfrentem questões sérias – substituirá todo o esforço legal construído para que sejamos, ainda que só no papel, um país civilizado.
Por último, outro argumento um tanto quanto frequente, já que quase sempre formulado com base no senso comum, infelizmente ainda informa o debate: dizem os defensores da redução da maioridade penal que, se o problema é social, por que então punir maiores de 18? É claro que esse argumento é falacioso, mas a falácia, reconheço, nem sempre é fácil de se mostrar justamente porque envolve questões de política criminal e de criminologia. Embora não sendo especialista em direito penal, é fácil perceber que a pena serve também para apaziguar a sociedade. Ela não é apenas para punir o criminoso, mas é voltada para garantir, também, a pacificação social. É nesse contexto que se compreende a punição do criminoso, além do fato de que, espera-se, o adulto já terá tido ocasião de perceber com maior rigor a qualidade de suas escolhas. Já o menor de 18 anos nem sempre terá a mesma condição. É óbvio que existem menores de 18 anos que têm discernimento necessário, mas o princípio da legalidade impede que se estabeleçam penas de acordo com a cara do freguês. Daí o estabelecimento do limite.
No nosso desespero pela desgraça que construímos para nós mesmos, morre a cada dia a esperança de que nossas instituições funcionem bem, e cresce nossa sede de vingança.
P.S. – Para quem quiser ler mais sobre o assunto, recomendo: http://armabranca.blogspot.com.br/2012/12/reducao-da-maioridade-penal-para.html
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16/04/2013 em 21:20
Se as instituições não são confiáveis e é fácil perceber que a pena serve também para apaziguar a sociedade, por que não reduzir a maioridade penal? Acredito que na Noruega exista um nível de civilidade muito maior do que no o Brasil. Desta forma fica fácil para os noruegueses classificar como retrógrado a penalização de um adolescente pelos seus crimes. Qual a proporção de crimes praticados por adolescentes noruegueses em relação aos adolescentes brasileiros? Complicado é conviver aterrorizado por tamanha criminalidade – de adolescentes e adultos – que nos assola diariamente. Acredito que a redução da maioridade penal no Brasil seja necessária justamente porque “a desgraça maior do Brasil é a falta de confiança nas nossas instituições”. Acredito ainda que os exemplos de penalizações de jovens adolescentes criminosos irão servir de exemplo para os outros. Sei que não será a solução do problema, mas, com certeza, deverá haver uma boa redução da criminalidade por menores, aumentando nossa segurança.
30/05/2013 em 18:53
Francinho, excelente reflexão.
Parece-me que Wagner Cristiano não alcançou a profundidade da análise e simplesmente divergiu por divergir, certamente por acreditar sinceramente que a prisão é fator de redução de criminalidade: pena = menos crimes.
Criamos e perpetuamos um sistema prisional ineficiente, que já perdura por mais de dois séculos. Está claro que nossa sociedade e nosso Estado não têm coragem, nem proposta ou iniciativa política para muda-lo. Não perceber que o sistema prisional brasileiro é um fator de aumento de criminalidade e não de diminuição, parece-me um erro crucial e, infelizmente, comum. Basta olhar qualquer estatística acerca da reincidência dos egressos da cadeia brasileira. O índice é altíssimo.
Enquanto isso prosseguimos copiando os norte-americanos naquilo que eles têm de pior, continuamos vivendo em nossas prisões residenciais e sendo vítimas destes homens e mulheres marginalizados, que além de não terem tido a sorte de se desenvolverem com dignidade, saem embrutecidos dos cárceres imundos em que são confinados.
Reduzirão o limite da maioridade penal (estou certo que o farão, porque essa é a bola da vez na mídia nacional) e superlotaremos ainda mais os nossos cárceres, propiciando a piora um número maior de encarcerados. Oxalá haja uma luz no fim do túnel, porque ele chegou e ainda não a encontramos.
Grande abraço.
Guto.
31/05/2013 em 11:40
Olá Gutemberg, tudo bem? Li seu comentário e entendi a sua opinião. Discordo de você quando diz que não alcancei a profundidade da análise e apenas divergi por divergi. Isso soa inclusive como arrogância, mas acredito que não tenha sido essa a sua intenção. O senso crítico de um nem sempre é igual a do outro, por isso existem as discussões. Das discussões nascem os argumentos e os melhores argumentos definem as soluções a serem tomadas.
Compreendi muito bem a Análise feita por Francis e apenas discordei dela. Pode ser que você já tenha um pensamento formado sobre o assunto e discorda de tudo que é contrário, sem ao menos analisar a profundidade do contra-argumento.
Enfim, continuo apoiando a redução da maioridade penal no Brasil mesmo sabendo que esta não seja a melhor solução. A solução ideal seria realmente impor penas alternativas e tratamento em clínicas especializadas com regime de reclusão. Mas, como o próprio autor do texto disse: “é fácil perceber que a pena serve também para apaziguar a sociedade. Ela não é apenas para punir o criminoso, mas é voltada para garantir, também, a pacificação social. É nesse contexto que se compreende a punição do criminoso.”. Para mim, não é uma saída mais fácil. É uma saída necessária levando-se em consideração ao contexto político do país.
Abraços!