11/01/2020
por francis
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Dr. Ruy Medeiros

Ruy Medeiros

“Quem peca, contra si peca; quem comete injustiça, a si agrava, porque a si mesmo perverte.”

Marco Aurélio

Nesses tempos em que ser troglodita é a nova normalidade, vê-se anões criticarem a gigantes com a sem-vergonhice dos ignorantes. Exemplo claro disso é essa guerra ao legado de Paulo Freire, sendo curioso que tal guerra é travada por pessoas que jamais passaram pelo crivo do reconhecimento que Paulo Freire passou. O atestado de competência de alguém se torna visível por seus resultados empíricos ou pelo reconhecimento dos seus pares através de publicações científicas, docência, etc. É assim no mundo civilizado, era assim até no Brasil de anteontem. Esse dano à convivência cívica e à cultura do apreço ao saber vai demorar décadas para ser mitigado no Brasil – e imagino que será o maior dano que esse estado de coisas deixará, porque uma geração crescerá achando que isso tudo – essa indigência intelectual e moral – é normal.

Faço essa introdução porque chegou pela internet notícias sobre ofensas proferidas a alguém a quem admiro e devo muito, alguém que sempre foi considerado por mim e por muitos como exemplo e norte. Refiro-me ao Dr. Ruy Medeiros, criticado em dois artigos em blogs de Vitória da Conquista. 

Há pessoas que, quando crescemos e descobrimos que são humanas como nós, passam a ser menos ou pouco admiradas e mais ou muito compreendidas. Exceção a isso, Dr. Ruy Medeiros, pra mim, é um paradoxo: não encontrei nele as comuns vaidades que todos nós temos, e minha compreensão sobre ele também não aumentou muito: continua um mistério compreender como alguém pode fazer tanto em apenas uma só vida, e ao mesmo tempo manter-se íntegro, sem erodir seus princípios.

Eu vou me concentrar em duas das insinuações – ofensas, mesmo – feitas a Dr. Ruy: a de que teria sido movido por interesses econômicos e a que teria feito captação de clientela. Deixo o resto de lado porque, tendo ouvido a entrevista de Dr. Ruy que teria gerado a celeuma, percebo que as agressões vieram do fígado, porque alguma lógica se poderia esperar de algo que viesse de um cérebro, ainda que diminuto. Dr. Ruy diz A, e é acusado de ter dito C, e isso não precisa de resposta longa, mas apenas que se aponte a falácia. Mas as ofensas chamam a atenção porque demonstram que nem para ofender seus críticos possuem algum refinamento.

Poderiam chamar Dr. Ruy de muitas coisas para ofendê-lo: ainda que não fossem verdadeiras as ofensas, poder-se-ia lançar dúvida. Mas, incompetentes até para ofender, escolheram justamente aquilo que notoriamente não se identifica com este advogado: interesse econômico (em seu sentido vil e egoísta) e agir antieticamente.

Quando comecei a advogar no escritório de Dr. Ruy, menos por minha não-tão-promissora competência e mais por ser seu sobrinho – embora ele raramente negasse uma oportunidade a alguém – chamava a nossa atenção – minha e dos outros colegas do escritório – a romaria de clientes pobres, pés quase descalços, cansados e suados que chegavam ao escritório. Muitos vinham na certeza de que seu (dele) trabalho seria gratuito, e quase sempre acabava sendo mesmo. Quase todos chegavam perguntando: “É aqui que é Dr. Ruy, o advogado do Estado?”. A repercussão de seu desprendimento por cobrança e por patrocinar causas dos desvalidos era tamanha que muitas pessoas simplesmente acreditavam que ele não era um advogado particular. 

Herdamos, muitos de seus colegas de escritório, algumas dessas causas. Lembro que meu primeiro honorário (não foi bem honorário, foi um presente da cliente) foi um quilo de café moído de uma senhora que ficou grata por termos defendido seu filho de uma injusta demissão, gratuitamente. 

Quantas vezes, morto de fome ao meio dia, querendo ir logo pra casa, chegava algum cliente desesperado, e saía Dr. Ruy, me levando junto – ele não dirigia, e eu, recém-saído da autoescola, e faminto, acabava por conduzi-lo – para medir alguma área, olhar algum processo, pegar os dados do cliente, para mais um processo que, economicamente, nada renderia.

Humanamente era impossível atender todo mundo, e Dr. Ruy tentava às vezes recusar uma causa – tentava encaminhar a pessoa à Defensoria Pública, explicava que não trabalhava – como de fato não trabalhava – com Direito Penal, etc., mas quase sempre a causa pro bono ficava no escritório, seja porque Dr. Ruy afinal pegava a causa, por pura compaixão,  seja porque pedia a um colega seu para acompanhar o cliente, novamente por puro desprendimento.

Da mesma forma vi Dr. Ruy recusar causas promissoras, apenas por contrariarem seu senso de justiça. Veja: não eram causas desonestas, indignas ou perdidas – pelo contrário. Nenhum advogado estaria desonrado ao patrociná-las, mas Dr. Ruy, justamente por não se mover por interesse econômico, não no seu sentido vil, não as patrocinava se sua consciência assim lhe recomendasse. 

Aliás, reza a lenda que um dia, ao ser perguntado por um fiel sobre a razão pela qual o advogado da Diocese era um ateu, o pároco ou bispo teria dito: “Meu filho, Dr. Ruy é mais cristão do que boa parte dos que vão à missa”.

A juventude pode ser bem irresponsável: lembro Dr. Ruy, com paciência, cortando palavras ofensivas de minhas petições, técnico que sempre foi, mas deixando uma ou outra frase apaixonada, sorrindo vez por outra e perguntando se precisava mesmo de tanta eloquência.  

Atribuo essas ofensas ou à irresponsabilidade da juventude, lembrando do jovem advogado desaforado que fui no inicio, ou a falta de caráter. Não conheço seus ofensores – um, se esconde sob “a redação”, e o outro, desprovido, obviamente, de competência para contestar Dr. Ruy com argumentos, como se pode ver por sua resposta vaga, descontextualizada e baseada em sofisma. Partiram para uma ofensa pessoal e gratuita, o que desmascara desde já a falta de preparo até para ofender, já que, repito, escolheram a ofensa menos crível possível.

Eu poderia prosseguir aqui com exemplos, caso não se tratasse da pessoa menos ambiciosa no sentido econômico que conheço e de que essa falta de apego ao dinheiro-acima-de-tudo não fosse conhecida por todo mundo. Todo. Mundo.  Poderia mencionar o fato de se tratar de um dos advogados mais renomados de Vitória da Conquista, sem, no entanto, ostentar economicamente o que tal estatura obviamente traria consigo. Chega a ser folclórica a imagem do Dr. Ruy caminhando para o fórum, para a casa, sem relógios caros, sem ternos das grandes marcas. Seu patrimônio: livros, filhos formados e educados, diversos profissionais formados ao longo de anos sem qualquer contrapartida de nossa parte. 

Algo que não se retira de alguém é o seu caráter. Parte do meu foi forjado por alguém me dizer “não faça isso, Ruy não vai gostar”. Seu rígido senso do dever, não diferente daquele de seu pai, e acima de tudo sua sempre ausente tergiversação com princípios foi, mais do que o Direito em si, o que aprendi em onze anos de advocacia com Dr. Ruy. Um dia espero poder escrever mais sobre o que aprendi com ele.

Para encerrar, sei que Dr. Ruy não precisa de atestado meu – ainda mais sendo alguém de sua família. A sociedade de Vitória da Conquista, por intermédio de advogados, movimentos sociais, políticos e outros trabalhadores já deu sua resposta. Se o faço é porque me sinto no dever de apontar esse desatinado libelo contra ilustre patrimônio que é Dr. Ruy Medeiros para Vitória da Conquista. Infelizmente está na moda no Brasil: agora qualquer pobre de espírito que quer tomar um atalho para não ter de se esforçar, estudar, trabalhar, enfim, ralar para compreender o mundo em sua complexidade, opta ao invés por denegrir aquele a quem jamais alcançará.

11/12/2019
por francis
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Brasileiros podem ter dupla nacionalidade?

Atualização (27.12.2023): O conteúdo desse artigo já está ultrapassado. O Congresso Nacional promulgou uma emenda constitucional que permite a dupla cidadania. Quando esse artigo foi escrito, tal emenda ainda não havia sido aprovada. No final do artigo, ao mencioná-lo, tratava-se apenas de projeto de emenda constitucional. Felizmente foi aprovado.

Uma questão recorrente para quem mora fora do Brasil é se é possível adquirir outra cidadania e manter a brasileira. A pessoa se muda, por exemplo, para os Estados Unidos ou outro país da Europa, vive lá por vários anos, casa-se, constitui família e resolve se naturalizar, e a questão que vêm à mente é: posso continuar sendo brasileiro(a)?

Essa questão, aparentemente simples, causa muita confusão, quer porque requer interpretação de leis, quer porque existem poucos advogados especializados no tema, quer porque nem sempre a orientação das embaixadas mundo afora foi correta. Resolvi, então, escrever esse post para tentar esclarecer o assunto de uma vez por todas.

Veja que, apesar de ser esse post relativamente longo, ele não esgota o assunto nem contempla todas as nuances do caso. Em dúvida, procure um bom advogado especializado no assunto.

Mas então, é possível ter duas nacionalidades, sendo brasileiro(a)?

A resposta é: depende.

O Brasil só admite dupla cidadania excepcionalmente. Ou seja, não é todo mundo que pode adquirir uma outra cidadania podendo manter a brasileira.

Para você adquirir outra cidadania sem arriscar perder a brasileira, dois fatores precisam existir:

  • O país cuja cidadania você pretende adquirir deve permitir a dupla cidadania;
  • Você se encaixa em uma das exceções nas quais o Brasil admite dupla nacionalidade.

Quais são as exceções em que o Brasil não admite a perda da cidadania?

A regra sobre cidadania não está em uma lei qualquer, mas sim na própria Constituição:

Art. 12 – …

§ 4º – Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:

I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional;

II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos:        

a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira;         

b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis;      

Ou seja: o Brasil só admite que o seu cidadão não perca sua nacionalidade brasileira ao adquirir outra se esta outra for considerada originária (já explico o que é), ou se a cidadania for exigida ao imigrante brasileiro como condição para permanecer no país ou para exercer direitos civis (também já explico).

De cara, já se percebe que a regra é que o Brasil não admite a dupla cidadania, mas que esta é possível apenas em casos excepcionais.

Como funcionam essas exceções?

A primeira das exceções para se manter a nacionalidade brasileira ao adquirir uma outra é quando essa outra nacionalidade é considerada originária.

Mas o que é nacionalidade originária?

Via de regra, a nacionalidade originária é aquela que a pessoa adquire por nascimento, isto é, desde que nasceu. Se aplica em vários casos:

  • a pessoa tem pai ou mãe estrangeiro, e portanto já nasceu com a nacionalidade estrangeira;
  • a pessoa tem ascendentes (pais, avós, bisavós) no país, e este considera que filhos, netos, bisnetos, já nascem com aquela nacionalidade.

Ou seja: os descendentes de imigrantes europeus no Brasil conseguem manter a nacionalidade brasileira ao adquirir a nacionalidade de seus antepassados portugueses, italianos, etc., porque não é bem que essa nacionalidade é adquirida – ela é apenas declarada. Em outras palavras, a pessoa já nasce com o direito.

Há alguns países, como a Itália, em que a cidadania também se adquire – ou se adquiria, não tenho certeza – automaticamente pelo casamento. Alguns entendem que esse também seria um caso de nacionalidade originária ou imposta, mas não há consenso.

A segunda exceção, mais complexa, é aquela em que o cidadão se naturaliza porque se não o fizer, não poderá mais se manter no território ou não poderá exercer direitos civis.

Veja que são dois casos distintos: em um, o cidadão precisa da cidadania para não ser expulso do país – caso raro, até porque geralmente a pessoa já tem visto permanente como pré-requisito para se naturalizar. Ou seja: difícil preencher, na maioria dos países, o requisito para adquirir a cidadania sem antes ter residência permanente.

Já o outro caso, ou seja, de adquirir a cidadania como condição para exercer direitos civis, e mais complexo. Eu não quero me aprofundar no tema, o que exigiria uma pesquisa imensa.

Direitos civis são aqueles que existem pelo simples fato de você existir: direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade. Se o país onde você vive te negar um direito básico como entrar na justiça, ter direito a um processo justo, poder comprar uma casa, etc., aí adquirir a cidadania é quase obrigatório, portanto o Brasil admite que você o faça sem perder a brasileira.

Mas muitas perguntas surgem: e se o país não me deixar votar? Bem, votar é considerado direito político, não propriamente um direito civil. Portanto, é improvável conseguir manter a dupla nacionalidade baseando-se na regra bastante comum que é aquele onde só os nacionais podem votar.

E trabalho? Bem, se você puder trabalhar sem ser cidadão do país, há relativo consenso de que poderá se naturalizar sem risco de perder a brasileira, ainda que muita gente tenha opinião contrária. Um exemplo que vi na faculdade era do caso da pessoa querer, por exemplo, ocupar um cargo que é restrito aos nacionais. Nesse caso, há quem defende que a pessoa pode se naturalizar sem problema.

Eu adquiri outra cidadania sem que esteja coberto(a) pelas exceções acima. Corro risco de perder a cidadania brasileira?

Resposta curta: sim.

Resposta longa: a perda da cidadania não é automática. É preciso que uma autoridade no Brasil tome conhecimento de que você adquiriu outra cidadania e abra um processo de perda de nacionalidade, com direito a ampla defesa.

Na prática, isso acontece muito pouco. Mas se você tem pretensões de um dia voltar ao Brasil, o seu risco de perder a cidadania pode aumentar.

Houve um período em que algumas representações diplomáticas no exterior orientavam os brasileiros no sentido de que o Brasil aceitava a dupla cidadania. E, pior: quando o outro país não permitia a dupla cidadania, algumas representações diziam que o Brasil não aceitava a renúncia. Essa orientação é considerada, hoje, equivocada.

Eu desconheço as razões para essa interpretação, ou seja, porque algumas embaixadas orientavam ser possível manter as duas nacionalidades, sempre. Talvez seja o fato de que o Brasil nunca teve interesse em que imigrantes perdessem nacionalidade. Talvez porque havia certo entendimento de que a perda da nacionalidade deveria ser bem restrita. Porém, mesmo que você tenha se você tenha adquirido outra cidadania com base nessa orientação, ainda assim você corre risco de perder a cidadania brasileira, caso não se encaixe nas exceções que descrevi acima, claro. O risco é grande? Acho que não. Mas existe? Sim.

Desde 1988 o Brasil proíbe a dupla cidadania (não me recordo se permitia antes desse ano). As exceções acima foram adicionadas à Constituição em 1994.

Talvez, ao invés de risco, devemos discutir a qualidade da sua cidadania brasileira. Se você adquiriu outra sem que o Brasil admita a hipótese, sua cidadania brasileira é precária e existe apenas porque a outra cidadania é desconhecida das autoridades brasileiras. Para muita gente, isso não é problema. Para aqueles que querem manter a cidadania brasileira a todo custo, a situação é de insegurança.

Talvez a questão possa ser ilustrada melhor com o caso da brasileira que foi extraditada para os Estados Unidos. O caso foi o seguinte: uma cidadã brasileira emigrou para os Estados Unidos nos anos 90. Ela obteve a cidadania americana mesmo tendo o green card, o que dava a ela todos os direitos civis e garantia de residência. Em 2007 ela matou o marido e se mudou para o Brasil. Os EUA pediram a extradição dela, mas como ela era brasileira, o país negou a extradição (o Brasil não extradita seus cidadãos). Só que aí os EUA informaram que ela havia se naturalizado americana, e então o Ministério da Justiça do Brasil decretou a perda da nacionalidade brasileira dela, o que foi confirmado pelo STF. Reconhecida a perda da nacionalidade brasileira, ela foi em 2018 extraditada para os EUA para cumprir sua pena.

O relator do caso no STF, ministro Luís Roberto Barroso, disse que, ao receber o Green Card, Cláudia obteve “autorização para permanência, trabalho, e gozo de direitos civis, tornando-se, assim, absolutamente desnecessária a obtenção da nacionalidade norte-americana”. Portanto, para ele, o Green Card garantia o usufruto dos direitos civis.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42752319

O que esse caso ilustra, como bem informa o artigo citado, é que quem adquiriu outra cidadania sem estar coberto pelas exceções corre o risco de perder a brasileira, independentemente de ter adquirido cidadania estrangeira sob orientação incorreta. Veja o que diz o Min. Luis Barroso no artigo mencionado:

O ministro Luís Barroso afirmou, porém, que a legislação não protege quem toma a decisão sem desejar suas consequências. 

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42752319

Há, então, alguma esperança para que eu possa manter a minha cidadania brasileira tendo adquirido outra nacionalidade?

Resposta curta: sim 🙂

Tramita no Senado Federal um projeto de emenda constitucional (PEC) que retira a atual restrição à dupla cidadania que existe na nossa Constituição. O projeto já foi aprovado em várias comissões, e agora segue para votação.

Com a mudança constitucional, será possível conservar a cidadania brasileira em qualquer circunstância – a menos, é claro, que o país no qual você pretende se naturalizar exija a renúncia da brasileira.

Só que nunca se sabe qual será o resultado da votação, nem quando isso ocorrerá.

Visando tentar ganhar apoio popular para esse projeto, criei uma petição pública para tentar sensibilizar os senadores e deputados pela aprovação desse projeto.

Assim, se você considera que a restrição constitucional à dupla cidadania é injusta, por favor, assine a petição!

Sagrada Família

09/11/2019
por francis
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Barcelona by night

Eu pensava que havia perdido a vontade de sair viajando. Afinal de contas, eu nunca fui lá tão fã de lugares como sou de pessoas. Além do mais, a burocracia para viajar de avião – controles de segurança, espera, bagagem extraviada – noves fora não ser ecologicamente bom, aliado a um crescente medo de turbulências, me desencoraja um pouco.

Mas nessa semana fui a Barcelona por razões de trabalho. Nunca havia ido a Barcelona, e pra ser sincero a Espanha deixou de ser um país que me atrai, apesar de conhecer pessoas fantásticas de lá – tudo por causa do tratamento rude que sempre tive em Barajas, Madrí.

Fiquei encantado com a cidade, ou melhor, com a excelente impressão que tive das pessoas em Barcelona. Corteses desde o aeroporto. Sorridentes em todos os lugares. Muito diferente da imagem que eu guardava de Madrí.

Mas o que me toca na vida são aqueles momentos efêmeros, que quase sempre são bons porque efêmeros, que perderiam a magia se esticados. Como quando vi aquela moça cantando no metrô…

Entrou acompanhada com um rapaz que puxava uma caixa de som, e começou a cantar. Gostei que alguém cantasse no metrô, acostumado que estou com o silêncio dos trens de Oslo e com certa nostalgia de uma bagunça, de uma desordem. Estranho eu ter gostado, eu que normalmente fico constrangido ao me pedirem dinheiro, e alguém cantando no metrô vai dar nisso… Mas gostei, pronto.

Ela chamou a minha atenção. Tinha cabelos pretos – ou será vermelhos? Cantou “Je veux”, de Zaz, que fala justamente em não querer coisas de luxo. Parecia mais autêntica ela cantar essa música do que a própria Zaz. Viver da arte, imagino, quase nunca é fácil.

Eu, ali, vindo de uma conferência onde se falava de modelos de negócio, virtualização e nuvens – não as do céu, mas as dos computadores – fui apresentado involuntariamente àquela moça que cantava tão bem que me fez feliz no metrô quase lotado. E eu não conseguia parar de olhar para ela, que cantava, sorria, e rodava pelo trem.

E então ela passou o chapéu. E detestei não ter moedas, e detestei a minha vergonha de não tirar uma cédula do bolso, com vergonha de alguém achar que seria demasiado, com receio de estar exagerando, não sei.

Saí com a moça na cabeça e a vergonha na alma.

Fui ao hotel, deixei a pesada mochila no quarto, e fui comer algo simples, que essas conferências são cheias de comida. E Barcelona, que de alguma forma me remete ao Brasil, tem alguns tesouros escondidos. Fui a um desses comer um tira gosto qualquer, tomar uma cervejinha, fingir que estava na Kina de Masú, boteco da minha Conquista.

Saí do boteco, e já havia tomado rumo para o hotel, quando avisto a moça do metrô. Sim, era ela. Fumava, e conversava com alguém. Eu não pensei – será a cerveja, ou será que foi apenas algum bom-senso, magia ou loucura que ainda restava – e fui até ela, já com uma cédula na mão, e em portunhol claro e escorreito perguntei: “posso te dizer uma coisa?”. Ela, surpresa, disse sim – e eu, com o dinheiro na mão e o coração na boca disse que ela estava maravilhosa naquele metrô, que me fizera sorrir, e que eu gostaria muito de ter contribuído com ela, mas ela se foi sem que eu o tivesse feito, e gostaria de entregar isso, a cédula, a ela.

Palosanto, boteco em Barcelona
Palosanto, fantástico boteco em Barcelona

Ela me olhava meio sem entender – foi meu portunhol? Foi a cena inesperada? Mas não sei, ela de repente se deu conta, e me deu um longo e gostoso abraço. Eu disse muito obrigado, ela, imagina, obrigado eu. E fui para o hotel.

Senhores, nada há igual à vida quando ela permite desfazer a covardia feita e fazer a loucura não-feita.


No avião de volta, viajo ao lado de uma moça muçulmana que vinha pela primeira vez à Noruega. Conversamos sobre tudo: incrível o que se pode conversar em duas horas de vôo. Houve até aquele momento do tipo “Tudo o que você queria saber de uma garota muçulmana mas tem vergonha de perguntar”.

Fiquei um pouco triste quando discutimos religião. Eu disse que era cristão, mas que tenho poucas certezas. Ela, de que o Islã não estaria sujeito a interpretações, que o Islã seria a única religião não-subjetiva.

Nesse momento ganhei a certeza que precisava: não se pode ter fé sem duvidar um pouco. Ela, um doce de pessoa, dizia que os extremistas não seriam verdadeiros muçulmanos. Acho que ela não percebeu o paradoxo de que eles provavelmente diriam o mesmo dela.

Fiquei feliz de ter conversado muito com ela e com sua amiga, mas de certa forma triste – entreguei um pouco da minha fé à dúvida, mas gostaria de ter mais fé. Mas gostaria que ela talvez tivesse um pouco da minha dúvida, porque a certeza dela significa a certeza que nos danamos todos nós outros. Não é apavorante que alguém pense que todo mundo que não tem a mesma fé vai se lascar um dia? Como alguém pode ter essa certeza?


Enfim, acho que quero viajar mais. Vai ver vejo a moça do metrô novamente, ou a moça muçulmana que ouvia Maria Gadú, ou alguma outra pessoa a me falar de fé ou que simplesmente cante…

17/05/2019
por francis
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The darkest hour

Antes de ler esse post, façamos o seguinte exercício mental: faça de contas que Flávio Bolsonaro tem relações com milícias, que praticou a chamada “rachadinha” e que surrupiava parte do salário de seus assessores, como suspeita o Ministério Público. Faça de contas que seu pai praticava os mesmos crimes. Faça de contas que sabia um o que o outro fazia. Fez de contas? Então vamos lá, você vai ver onde quero chegar.

Eu fui criado em uma família onde nunca faltou muito amor. Parte importante na transmissão de valores da minha família foi o meu avô. Meu avô era “das antigas”, do tempo em que o homem se colocava em segundo plano. Não tinha essa preocupação moderna de “cuidar de si, colocar-se em primeiro lugar”. Em primeiro plano estavam os deveres: dever de ser honesto, dever de prover para a sua família, dever de ajudar a quem precisa quando se pode fazê-lo. Não digo que meu avô não tinha lá seus defeitos, mas, sendo de família pobre e tendo que sustentar treze bocas, mais a sua e a de minha avó, seu norte, ao menos aos meus olhos, era feito de disciplina e trabalho.

Meu avô era policial militar. Essa combinação – família pobre, disciplina, trabalho, treinamento militar – pode fazer você pensar que meu avô era muito duro. E era. Mas eu nunca tive dúvida do seu amor pela família. O que talvez era um pouco estranho, aos olhos da moderna preocupação com a personalidade, era que, num conflito entre o amor e o dever, eu acho que meu avô ficaria com o dever. Explico: não havia muito espaço para alguns erros. Meu avô tinha tolerância zero com a desonestidade. Zero. Eu particularmente duvido que havia espaço para os dois com o meu avô: não se poderia esperar lealdade de meu avô por causa do amor, se essa lealdade pressupunha tolerância à desonestidade.

Mas não foi só do meu avô que tive essa fixação em ser correto, embora sei que, se errei de alguma forma, ou se me arrependo de alguma decisão mal tomada, foi sempre de algo que aconteceu depois que ele morreu.
Ainda que não fosse o meu avô, de alguma forma ou de outra somos condicionados a saber o que é certo e o que é errado. Escola, igrega, amigos, vizinhos, estranhos, ou mesmo, sei lá, alguma direção inata – a noção de certo e errado nos acompanha a todos, penso eu. O que talvez é diferente é a tendência a se escolher o certo e o errado. Alguns, mesmo sabendo o que é certo e errado, escolhem o erro.

Como pai, me preocupo em transmitir à minha filha a idéia de fazer uma boa escolha. Uma escolha que nem sempre vai representar uma vantagem pra ela, mas que de fato é a escolha certa. Claro, penso que ela tem que cuidar de si, tem se valorizar, mas quero crer que ela poderá escolher fazer o certo e ter uma vida eticamente responsável. Mas o fato é que me preocupo como minha filha me enxergará. Ela me enxergará como eu enxergo hoje o meu avô, ou me enxergará de forma menos lisonjeira?

Chegamos então no ponto desse post: fazendo de conta então que Flávio Bolsonaro e seu pai Jair sabem um das (supostas) tretas do outro: em que momento da vida de Flávio terá ele notado que seu pai não faz o que é certo? E em que momento terá percebido que deveria fazer como sei pai?
Em que momento terá Jair notado que seu filho não era flor que se cheira, mas teria aceito, talvez até com certo orgulho, que seu filho seguia seu próprio caminho delinquente?

Em que momento, entre as piadinhas de “tá virando homem”, ou “cuidado para não virar bichinha”, que imagino circulavam na família dos Bolsonaros, terá seu filho – terão seus filhos – escolhido levar vantagem com a política, tirar dinheiro de seus assessores, serem homofóbicos publicamente, etc.?

Veja, estou partindo de um pressuposto de que sabiam que isso tudo é errado, mas posso estar errado, e que nem todos tem essas distinções claras na cabeça. Mas a pergunta persiste: em que momento perceberam que seu pai não era o exemplo que gostariam de passar para seus filhos, mas escolheram, assim mesmo, seguí-lo?

PS – Vai ver é só ingenuidade minha mesmo perguntar essas coisas. Mas essa coisa de ser pai faz a gente ficar meio ingênuo, achando que somos nós os responsáveis por qualquer coisa que nossos filhos venham a fazer. Vai ver os Bolsonaro Jrs. nunca tiveram qualquer problema com seu pai, vai ver foi uma coincidência terem seguido o mesmo (suposto) caminho errado, ou vai ver não têm nenhuma noção de certo e errado, como assumi que todos têm.

23/02/2019
por francis
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Gláucia: sejamos melhores

Ontem publiquei um post a respeito de como se despreza o rigor científico e se privilegia o próprio taco. Eis que recebi o comentário abaixo:

Gláucia, isso não se faz…

A autora, Gláucia Silvano, na crença de que isso aqui é algum tipo de espaço público onde ela acredita ser desnecessário ser educada ao interagir com os outros, comentou o post nos termos acima.

Se eu estivesse no Brasil, abriria um processo judicial, porque eu acho que é divertido ver as pessoas colocarem o rabo entre as pernas quando percebem que o mundo civilizado não tolera o comportamento animalesco de sair xingando estranhos, ainda mais quando o estranho em questão – este nada notável blogueiro – publicou um texto inofensivo.

Mas, na crença em um mundo melhor, apesar de tudo indicar que não há fundo nesse poço, narro uma certa experiência que a vida me proporcionou e ofereço à Gláucia uma escolha, como verão:

Eu sou pai de uma criança maravilhosa, e essa condição me dá certa vergonha de tudo o que é imperfeito em mim. Eu não quero transmitir à minha filha nada de ruim, nem nada que acabe por lhe impor meu modo de ver o mundo, porque na vida tenho mais dúvidas que certezas. Assim, apesar de “esquerdopata” – nisso a Gláucia pode lá ter razão – não penso em doutrinar a minha filha. Nem sobre religião, apesar de cristão que sou. Nem sobre meu gosto musical, horrível. Não espero que a minha filha tenha orgulho de mim, mas se não tiver vergonha, já me darei por satisfeito.

Meu vocabulário nunca foi dos melhores, mas agora tenho preocupação ainda maior. Palavrões, nem mesmo depois de uma topada. Tenho uma pequena que está atenta a tudo que faço, e não quero que ela aprenda palavrões. Quero que a minha pequena, de mim, tenha só bons exemplos.

Gláucia: não te conheço. Não sei se tem filhos, não sei sua profissão, nem como é sua vida. Mas se me permite: antes de ir pro inferno, que é pra onde gente como você deve naturalmente acabar indo, reflita. Quer que seus filhos tenham uma mãe que tem coragem de, em público, dizer tanta sujeira a um desconhecido apenas porque não gostou do que ele escreve ou, pior ainda, porque politicamente pensa de forma divergente à sua? Gostaria que seus vizinhos soubessem disso? Se tiver patrão, é algo que contaria a eles com orgulho? Diria isso em uma igreja? Em uma entrevista de emprego?

De repente você poderá responder a sim a todas essas perguntas, e aí será um caso perdido. Mas se, após ter refletido e tiver achado que pisou na bola, peça desculpas que retiro esse post. Eu acredito que todos nós podemos errar no calor das emoções, e o perdão é uma virtude que preciso mesmo praticar.

Mas caso queira manter a ofensa, então deixo ela aqui, imortalizada, acessível via Google a todos que quiserem saber como se comporta a Gláucia Silvano do estado de Pernambuco. Aqui poderão seus filhos, infelizmente, ao eventualmente pesquisarem sobre sua mãe, ver com que falta de educação ela rosna perante os outros. Aqui poderá um futuro chefe seu ver como você potencialmente poderia tratar um cliente. O Google não esquece, Gláucia.

Um dia pode ser que minha filhinha veja essa ofensa. É o lado ruim disso. Às vezes, ao ofender alguém, esquece-se que esse alguém tem família, amigos, colegas e chefes. É um constrangimento desnecessário. Tanto pra você, Gláucia, quanto pra mim. Talvez você não se sinta constrangida, talvez esse seja o seu normal, e talvez você opte por alimentar isso ainda mais. A mim me constrange esse tipo de linguagem em público. Em público não digo nada que não diria na frente de minha filhinha.

Mas meu conselho a você é: peça desculpas. Devemos isso a nossos filhos. Devemos lutar contra esse lobo raivoso que existe dentro de nós e oferecer a eles, ainda que falsamente, o que nem sempre somos nem temos a dar: bons pais e bons exemplos.

Gláucia, sejamos melhores.

21/02/2019
por francis
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O oficial é ser ignorante

Influenciado por um amigo mais sensato e menos colérico, resolvi não me envolver mais em discussões políticas no Facebook – pelo menos não em português, já que o mar não está pra peixe e os nervos ainda estão inquietos. Não tenho um pingo de vontade de passar na cara de ninguém o quão estúpida foi a decisão de votar em um ignorante obscurantista pra presidente da república, porque nunca foi segredo pra ninguém que esse governo, ainda que desse certo, estaria dando errado. Poucos se deram a uma análise fria de que eleição não é escolher a quem se gosta, mas sim o menos pior. 

Eu vou em breve adquirir uma outra nacionalidade. Às vezes penso em renunciar à nacionalidade brasileira, não porque eu seja um boçal que deixei meu gosto geralmente brega me contaminar a tal modo que me teria levado a praticar a maior das breguices, a saber, cuspir na própria origem. Afinal de contas, não existe uma diferença entre mim, o brasileiro, e o Brasil, país. Somos um só. Mas chega um certo ponto em que a gente se permite uma certa vergonha na cara. E essa vergonha na cara é que me faz não querer ser mais condescendente com a ignorância.

Sempre acusaram Lula de fazer apologia à falta de educação (formal). Eu nunca enxerguei isso nele, mas vá lá. Mas o que dizer de tanta gente com curso universitário desdenhar da formação acadêmica e substituí-la pela convicção formada no próprio fígado? Que desprezo é esse pela única forma – ainda que imperfeita – de atestar conhecimento? 

Um exemplo, claro, é o Olavo de Carvalho – auto proclamado filósofo que se credencia a ensinar filosofia e que um monte de gente que passou pela academia aceita numa boa. Como alguém que passou pela universidade, onde o saber é provado pelo fogo, pelo debate, pela contradição, pode aceitar um oráculo? Como podem enxergar a academia como um antro de marxistas, quando o que me lembro da faculdade é justamente a pluralidade de idéias, onde existiam os positivistas, os garantistas, os do “direito achado na rua”, e por aí vai? Como alguém formado em Direito – e aqui menciono o direito apenas por ser a área da academia que conheço mais – pode confiar mais no próprio fígado e senso pessoal de justiça, quando todo o propósito da formação jurídica é a de que o direito substitui a barbárie e o senso comum? 

Como gente que viaja para países civilizados que garantem a diversidade, o respeito comum e o debate honesto podem voltar pra casa e eleger a truculência? Como se pode achar que o Brasil é tão especial que se pode dar ao luxo de querer chegar ao primeiro mundo com valores de quinto? Ou alguém já viu algum país desenvolvido se eleger com uma plataforma tão retrógrada? Vejamos: quase todo país civilizado libera o aborto, combate fortemente o racismo, o politicamente correto é norma de conduta em sociedade e minorias são respeitadas. Que arrogância é essa de achar que o país pode ir pra frente indo ao contrário disso tudo? Que quando se quer civilidade é apenas praticar mimimi?

Quando foi que as pessoas se deixaram cegar pelo próprio fígado e fazer comparações sem base concreta? Eu cito um exemplo: como alguém pode ter assistido a Dilma fazer sua própria defesa por horas no senado e ainda achar que ela é uma sem-noção apenas por causa de comentários informais como aquele da mandioca, e assim achar que esse senhor que os lidera seria mais articulado? Como achar que Lula foi o maior corrupto que existiu quando toda acusação que pesa contra ele seria uma reforma de um apartamento que ele não comprou e de um sítio que não é seu, quando só o filho do atual presidente ganhou milhões em poucos anos em atividade suspeita? Como gente que foi a faculdade se permite raciocínios tão básicos e sem sequer alguma crítica? Veja, eu não estou discutindo a possibilidade de Lula ser corrupto – acho até que aceitou sim vantagem indevida. Mas se uma história suspeita admite uma versão plausível, não passa, pra mim, de história suspeita, ao menos no que se refere a um processo judicial. Cada um que tenha sua convicção, mas direito não é feito de convicção pessoal.

Eu estou gastando essas linhas com essas mini diatribes por uma razão simples, como que fazendo rodeios: como gente que foi a uma universidade não consegue entender que um jovem morto asfixiado durante 4 minutos de tortura por um segurança é apenas o resultado desse mantra brasileiro de que “bandido bom é bandido morto”? 

Quando você diz que quando se defendem os direitos humanos não se está a pensar nas vítimas, como você então explica isso? 

Não, se o Brasil é isso, não sei se quero continuar a ser brasileiro. 

28/09/2018
por francis
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Do Brasil bipolar

O brasileiro sempre teve uma imagem bipolar do Brasil e de si próprio. Ora somos o pior povo do mundo – o famoso complexo de vira-lata, onde, apesar de ser um país rico e cheio de potencial, sem terremotos, tsunamis ou outros desastres naturais, não conseguimos nos desenvolver. Ora somos um país formidável, exemplo para o mundo de boa convivência entre povos diferentes, cordial e solidário.

Esse Brasil de hoje em dia, de bater em imigrante, de xingar as pessoas que discordam de opiniões políticas, de perseguir jornalista – esse, para mim, é novo. Nós, brasileiros, nunca nos vimos como xenófobos ou hidrófobos. Pois parece que, se não nos chegam os desastres naturais, chegam esses outros desastres.

Essa divisão do Brasil entre apoiadores de Bolsonaro de um lado e aqueles contrários do outro gera muito barulho, mas talvez seja necessária alguma reflexão. Quando eu vejo amigos ou conhecidos dizendo, por exemplo, que irão deletar apoiadores de Jair Bolsonaro de sua lista de amigos no Facebook, eu fico me perguntando se essa pessoa não tem aquele parente dócil, gente boa, pessoa do bem, mesmo, mas que ainda assim votará em Bolsonaro. Imagino que todos os têm. 

Eu conheço os argumentos – não de todo sem sentido – de que: premissa número um: Bolsonaro produz seus disparates, de cunho nazista – é preconceituoso, racista, homofóbico, etc.; premissa número dois: sujeito vota em Bolsonaro. Conclusão: sujeito também é preconceituoso, racista e homofóbico.

É tentadora a tese. Longe de mim querer ser condescendente com algo tão sério. Não é isso. Eu costumo achar que a verdade normalmente nunca é tão fácil ou simples. Quem vota no PT, por exemplo, como eu cogito votar, não raramente precisa produzir um raciocínio bem sofisticado para justificar o seu voto: não, não se trata de Lula ser ou não ser corrupto, se trata do sistema que o condenou ter sido parcial. Não, não se trata de Dilma ter sido ruim, se trata de uma conspiração (?) do Congresso contra ela para tomar o poder a inviabilizar. Enfim, perceberam onde quero chegar. Eu acho que se trata muito mais de conversar.

Eu não acho que todo eleitor de Bolsonaro seja racista. Perguntei a uma amiga porque votaria em Bolsonaro. Sua resposta foi que votaria nele em razão da segurança. Há um discurso de Bolsonaro que atrai essas pessoas e, convenhamos, para a tal classe média, que consegue manter a cabeça acima d’água, é a segurança a maior mazela do Brasil hoje. Não, não são homofobias. Outra, vota por causa da “família” tradicional, a quem o PT teria atacado, mas que discorda de distribuir armas. 

O problema todo é que direitos humanos foram uma conquista lenta, ainda não completada. Portanto, na cabeça de alguém que não refletiu sobre os processos históricos, direitos humanos é “dar mole pra bandido”. Entre a realidade de um século atrás, onde o abuso do Estado poderia punir qualquer um, e os direitos e garantias existentes nas constituições democráticas, foram muitas lutas e lentas conquistas. Mas essa história não pode ser resumida a contento em uma discussão de Facebook onde se quer apenas dizer que não, não torturar não é ser legal com o bandido. Há todo um processo, de Lombroso à Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Revolução Francesa até os códigos penais modernos, que não cabe nessa discussão binária. 

Mas independente disso, volto ao tema do início: quando foi que nos tornamos tão agressivos, tão impacientes? Ou fomos sempre assim mesmo? 

De qualquer forma, eu li hoje um guia de um filósofo norueguês chamado Arne Næss que publicou uma obra chamada “Comunicação e Argumento – Elementos de semântica aplicada”, onde ele ofereceu um guia para a discussão pública, em 1966. Esse guia é composto de seis passos essenciais do que se deve evitar ao se debater algo em público. Foi impossível ler seus seis passos e deixar de refletir sobre a forma que discutimos nas redes sociais hoje:

  •  Evite irrelevâncias tendenciosas:

Por exemplo: ataques pessoais, alegações a respeito dos motivos do seu oponente, explicações sobre os argumentos, etc. 

Ou seja: chamar uma pessoa de nazista ou de petralha, dizer que alguém deve ter mau caráter por defender este ou aquele, dizer que a pessoa só diz isso porque não estudou/leu/pesquisou, etc.

  • Evitar referências desnecessárias a questões paralelas:

A discussão deve se ater – com perdão da redundância – ao que está sendo discutido. Exemplo: “Fulano promove a violência porque quer liberar armas.” – “Ah, ele propõe aumentar o salário mínimo.”.

  • Evitar ambiguidade tendenciosa:

Evite dizer algo genérico, que pode ser interpretado de várias formas. Tipo: “Nós, homens de bem, defendemos…”. “Homens de bem”, o que é isso? Só homens? Homens e mulheres? Como assim, de bem? Nós outros, por acaso, não somos de bem? 

  • Evite tentar colar no seu oponente algo que ele não afirmou ser/pensar:

Também conhecido como a “falácia do espantalho”, trata-se de refutar algo que o cidadão não afirmou e nem sequer defende. Tipo: “Você é a favor de bandido”, quando tudo que a pessoa disse é que não se deve torturar bandidos. Ou “não voto em Bolsonaro”. “Ah, mas você é a favor do PT”.

  • Evite declarações tendenciosas e incompletas sobre um fato:

Tipo quando o sujeito diz: “Fulano inaugurou o aeroporto de Salvador”, sem dizer que o aeroporto todo foi construído durante a gestão de Sicrano.

  • Evite tom tendencioso na apresentação:

Evitar ironias, sarcasmo, tom pejorativo, etc. Auto explicável, mas é o velho “Tá defendendo, deve ter roubado também.”. “Tá defendendo bandido? Leva pra casa.”, etc.

Acho que nossas discussões políticas melhorariam muito se observássemos essas regras. Não firmar uma conclusão sobre a parte contrária, mas procurar entender. As pessoas não são unifacetárias. Não é porque a pregação de Bolsonaro é nazista que as pessoas que votam nele necessariamente o serão – assim como quem vota em Haddad não necessariamente concorda ou aceita a corrupção praticada por membros do PT. Há nuances que, embora óbvias para quem se posiciona, não são tão óbvias assim para quem está do outro lado.

Não que não exista uma gente raivosa e irracional em cada lado. Mas, como disse, estou me referindo aos amigos, parentes, pessoas bacanas que, estranhamente, escolhem o inexplicável.

01/09/2018
por francis
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De ovos fritos

Há uma entrevista do professor de filosofia Clóvis de Barros Filho para o Jô Soares na qual ele define a felicidade como aquilo que você gostaria que durasse para sempre. Em sua ilustração, usa o episódio do sujeito que, morto de fome, pede uma pamonha e, ainda inebriado, pede uma outra que, ante a fome agora saciada, já não lhe proporciona mais o mesmo prazer.

Não sei se é isso que acontece comigo ao comer ovos fritos hoje em dia. Talvez seja mais em razão das experiências que os ovos fritos, ou ovos estrelados, como chamavam-nos a minha avó, me fazem recordar.

Ovos fritos, ou estrelados, é o que gosto de comer aos sábados, no café da manhã. Porém, por mais que os coma, não consigo sentir neles o sabor que tinham quando morava no Brasil. Não sei se é o pão daqui que não combina muito – é quase sempre doce demais – ou não sei se é o fato de que, agora, são apenas ovos fritos, ou estrelados, desacompanhados de experiências que o tempo não apaga mas que vêm sempre à mente.

Ovos fritos os comia várias vezes por semana, até que a professora de biologia, ao saber disso, recomendou-me que os comesse apenas uma ou duas vezes por semana, em razão do colesterol. Comia ovos fritos, ou estrelados, com um milk shake de mamão que aprendi a fazer com a mãe de um colega, às 5:30 da manhã, antes de ir pra escola, com medo de acordar meu avô com o barulho do liquidificador. 

Aliás, mais tarde, um outro colega me disse que, nos seus tempos de comunista, quando o comunismo era clandestino, em um desses acampamentos que tinham, um companheiro pediu à cozinheira que fritasse, ou estrelasse, oito ovos para ele. Ao ver a cena, um outro companheiro, médico, tentou-lhe dissuadir: “Companheiro, o organismo não metaboliza isso com facilidade, não é bom para a sua saúde.”, ao que o guloso ovófago respondeu: “Companheiro, sai pra lá com sua conversa pequeno-burguesa e me deixa comer meus ovos!”.

Ovos fritos, ou estrelados, comiam-se com as mãos, sem garfo nem faca, usando-se o pão como talher. Nunca gostei de pão com ovo frito dentro – o pedaço de pão tem que ser desprendido com o tamanho ideal para abocanhar a quantidade certa de ovo. Como comia aquele amigo engenheiro que consertava rádios em cuja casa aprendi tanto sobre radioamadorismo – parecia que ovos fritos comidos assim eram a melhor iguaria que se poderia comer. E tinha que ser o pão da Padaria Maravilhosa, aquele pão que se esfarelava todo ao abrir, onde meu avô comprou por décadas os “pães de sal” que alimentaram três gerações dos Medeiros.

Ou as tentativas de fazê-lo ao gosto do freguês: ao visitar um primo, fui fazer o café da manhã e ofereci fritar, ou estrelar, alguns ovos, e perguntei se aceitava: “depende”, disse ele. “Consegue fazer sem quebrar a gema, de forma que fique o ovo no formato ideal?”. Essa passou a ser uma daquelas coisas que eu passaria a vida tentando, com limitado sucesso. Lembro que nem o Maguila conseguiu quando foi convidado certa vez a cozinhar algo no programa de Ana Maria Braga, aliás, o único episódio que me recordo ter assistido e gostado. Ele só sabia fazer ovo frito e, como eu, mal.

Todas as outras formas de comer ovos fritos, isto é, estrelados, que não fossem assim, na mão e com pão como talher, foram apenas meros desvios, ainda que boas experiências: como aquela que o vizinho chinês me ensinou como sendo iguaria típica: bate-se o ovo cru, frita-se, joga-se cebolinha e come-se mergulhando-o no molho de soja, com palitinho. Ou sob o cuscuz, como um dia me mostrou o nobre Notório Norberto. Ou o clássico ovo-arroz-farinha, quando se está com fome mas não se quer comer nada. É o curinga do almoço do jovem-preguiçoso que todos fomos um dia.

Outra forma de comer ovo – não sei se frito ou cozido – é o descrito como refeição tipo PF típica de Belo Horizonte no romance “Hilda Furação, de Roberto Drummond: coal: cachaça, ovo, arroz e linguiça. 

Lembro quando o tio me oferecia ao lhe visitar: “Fulaaaana, frita uns ovos para Francinho…”. Ou quando visitava alguém que nos hospedou em Itabuna, que nos ofereceu ovos no café da manhã. Ou quando aprendi que se podia fritar ovos na manteiga, mas nunca me acostumei à idéia; sempre preferi o bom e velho olho de soja de guerra.

Não, não sei se é o pão daqui que não combina, ou o se é o sal daqui que não salga. Ou se não é nada disso: talvez o mundo dos ovos fritos, digo, estrelados, da minha infância já não exista. 

Como também já não existe o mundo em que acordar aos domingos significava correr para a cozinha para ver se a tia já estava a fazer lasanha, a fim de  “roubar” um pouco do molho para colocar em um pão francês com presunto e comer acompanhado de uma garrafa Pepsi de vidro. Mas esse é assunto para outro post. 

Sem o mesmo sabor, comer ovos fritos, ou estrelados, talvez seja só uma tentativa de reviver sabores e vivências passadas, e por isso mesmo não se consegue deles extrair algo além das boas memórias e um pouco mais de colesterol. 

29/05/2018
por francis
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Noruega, imigração e etnocentrismo

Emigrar para a Noruega foi uma das escolhas mais felizes que tive. Eu me sinto bem aqui, considero-me integrado ao país e tive todas as oportunidades que poderia esperar. Claro, a situação atual do Brasil ajuda a não me arrepender da escolha, e os amigos e família ainda fazem falta. Além disso, tive meus percalços. Mas tem valido a pena.

Uma das poucas coisas que me fazem preocupar com a Noruega de hoje seja a percepção de que a cultura norueguesa seja etnocêntrica, e que a identidade do país seja tão ligada aos traços físicos da população que não haja espaço para quem pareça diferente. Esse é um problema que países formados pela imigração, como Brasil e Estados Unidos, talvez não tenham, ou não em tamanha escala.

Não, não é que a diversidade aqui não tenha espaço. Já virou até clichê dizer que se vêem mais negros na TV escandinava do que na brasileira. Pessoas descendentes de imigração recente são  frequentemente vistas como expoentes em suas profissões: nas artes, na medicina, no direito, enfim, em todo lado.

Mas há uma Noruega profunda, aquela distante de Oslo, que talvez não tenha assimilado tudo isso muito bem, e isso se reflete em manchetes como (links em norueguês):

Há outras questões, como a eterna discussão sobre ser ou não admitido hastear outra bandeira que não a norueguesa no dia 17 de maio, data cívica maior do país – volto a essa questão em algumas linhas.

Essas questões me fazem refletir um pouco sobre ser imigrante aqui. Até que ponto um imigrante é considerado bem-vindo, ou quais as suas limitações?

Quando vi a primeira manchete da lista acima, ficou claro uma coisa para mim: não existem, ou parecem não existir, diferentes tipos de imigrante. Enganei-me ao pensar que, para mim, toda essa discussão em relação a imigrantes não me dizia respeito: não sou muçulmano, não uso turbante, tenho formação universitária, trabalho e aprendi o idioma – tudo o que justamente parece faltar aos imigrantes quando se fala dos problemas da imigração. Mas não: quando se trata de discutir o problema da imigração, muitas vezes se colocam todos no mesmo saco. E é aí é que tudo fica confuso.

A segunda manchete revela o fato de parecer que o norueguês é tão ligado a certos estereótipos que certas coisas parecem inadmissíveis, como um imigrante usar a roupa nacional. Custa-me acreditar que em um país tão desenvolvido, tão generoso e tão progressista ainda se possa discutir um absurdo desses. E, pior: que mensagem isso manda aos imigrantes que se esforçam por se integrarem aqui? Terei eu que ter algum receio de que a minha filha possa usar a roupa do país que certamente ela considerará como seu?

A relação do norueguês com os estrangeiros é ambígua, marcada pela generosidade da maioria em nos acolher, mas também por certa paranóia em demarcar espaços que não cabem ao imigrante. Uma discussão sem sentido sobre se pode ou não portar-se uma bandeira de outro país que não a norueguesa ressurge todos os anos, como se fosse algum perigo. Até amigos meus dizem que, “olha, é o um dia especial, é o nosso dia, é o único dia que se pede algo assim”, como se a presença de algo estrangeiro fosse algo suportável durante todo o ano, mas em pelo menos um dia há a necessidade de se sentir só com seu nacionalismo. Fica até parecendo que a) existem legiões de estrangeiros doidos para saírem carregando bandeiras de seus países e b) o ato de carregar outra bandeira fosse alguma sabotagem ao dia nacional.

A Noruega conheceu a imigração relativamente recentemente. Não está acostumada à mistura. É curioso: todo o sistema tem algo de generoso com o imigrante: ensina-se às crianças muitas vezes em seus idiomas de origem para preservar suas culturas, há programas de incentivo à integração – um dos quais participei, há uma nítida paciência com o imigrante que esteja começando sua vida aqui. Claro, há racismo, há discriminação no mercado de trabalho, mas há também uma diversidade visível que não se vê, por exemplo, no Brasil ao se procurar pessoas negras em alguns setores.

A coisa é ainda um tabu: na Noruega, filhos de imigrantes muitas vezes acham ofensivo quando perguntados de onde são, porque querem ser aceitos como noruegueses, já que nasceram aqui e sempre viveram aqui, e por serem cidadãos noruegueses. Como se vê, essa distinção entre cidadania e etnia, aqui, parece tão problemática que cidadania não outorga o pertencimento que se quer ter – ser cidadão norueguês, assim, não basta para ser considerado norueguês.

Nesse estado de coisas, pergunto-me: qual o lugar do imigrante que não se vê em conflito com a cultura norueguesa, e que não se sente oprimido em relação à sua cultura original? Ou melhor, há algo intocável na Noruega para o norueguês-cidadão de outra etnia?

Esse problema eu não esperava em um país onde se celebra a constituição, e não os olhos azuis ou cabelos loiros – como marca de uma civilização.

17/05/2018
por francis
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O imigrante e as escolhas

Eu sou adepto do entendimento de que o imigrante precisa se adaptar ao novo país, preferencialmente sem se descaracterizar ou sem perder suas raízes. Mas reconheço que isso nem sempre é fácil. Não é sempre que se pode conciliar.

Filhos são uma dessas coisas que forçam o imigrante a ter que escolher qual a cultura dominante. Eu acho muito bom que se preserve a cultura brasileira, mas há momentos em que é difícil transmitir tudo que acho essencial transmitir para cultivar a idéia de brasilidade.

Hoje, por exemplo, é o dia nacional da Noruega. Todos vestidos com as roupas nacionais, até as crianças. Tendo filhos, há que integrá-los, até porque eles vão ter o sentimento de pertença ao país onde se encontram. E aí é quando você se toca que, por exemplo, esse lado da cultura brasileira não vai ser transmitido: dificilmente sua filha vai se vestir de baiana ou de indiazinha (noves fora o debate sobre apropriação cultural), não importa o quanto você queira preservar sua cultura.

Há que se fazer escolhas, o que é dolorido. Tipo, a língua – claro que vai ser transmitida, ainda que não em toda a sua riqueza – dificilmente conseguiria fazer minha filha vai compreender o idioma como é falado em sua forma doce, ao mesmo tempo dura, falada na zona rural do sudoeste baiano, ou mesmo a forma engraçada que se fala “conquistês” (pra quem é de Vitória da Conquista, é fácil identificar as frases que ninguém entenderia, como “quer quanto de posta?”). Música: claro que minha filha vai conhecer Elis Regina e Elomar, mas não vai sobrar espaço pra Belchior, infelizmente. Livros? Machado de Assis vai ser obrigatório – José de Alencar não, obrigado. Ela não vai conhecer, pro bem e pro mal, a TV brasileira, mas vai conhecer a Turma da Mônica. Assim, torno-me um filtro, justo eu, que não sou conhecido exatamente por ter bom gosto.

Vejo-me fazendo as escolhas por ela, com o coração apertado porque queria que ela se sentisse tão brasileira quanto eu, ao mesmo tempo que quero que se sinta 100% pertencente à Noruega, porque é esse país que a acolheu e que ela vai chamar de seu – a menos que eu consiga conquistar um espaço pro nosso país no seu coraçãozinho. O tempo dirá.

Um dia, deverei me naturalizar norueguês, pois agora é, também, o meu país, embora sempre com a certeza de que serei sempre e irremediavelmente brasileiro. Se o imigrante tem que se adaptar e renunciar um pouquinho coisas do lugar de onde vem, o filho do imigrante precisa aprender a amar as suas origens. Não sei o que é mais difícil.