“Quem peca, contra si peca; quem comete injustiça, a si agrava, porque a si mesmo perverte.”
Marco Aurélio
Nesses tempos em que ser troglodita é a nova normalidade, vê-se anões criticarem a gigantes com a sem-vergonhice dos ignorantes. Exemplo claro disso é essa guerra ao legado de Paulo Freire, sendo curioso que tal guerra é travada por pessoas que jamais passaram pelo crivo do reconhecimento que Paulo Freire passou. O atestado de competência de alguém se torna visível por seus resultados empíricos ou pelo reconhecimento dos seus pares através de publicações científicas, docência, etc. É assim no mundo civilizado, era assim até no Brasil de anteontem. Esse dano à convivência cívica e à cultura do apreço ao saber vai demorar décadas para ser mitigado no Brasil – e imagino que será o maior dano que esse estado de coisas deixará, porque uma geração crescerá achando que isso tudo – essa indigência intelectual e moral – é normal.
Faço essa introdução porque chegou pela internet notícias sobre ofensas proferidas a alguém a quem admiro e devo muito, alguém que sempre foi considerado por mim e por muitos como exemplo e norte. Refiro-me ao Dr. Ruy Medeiros, criticado em dois artigos em blogs de Vitória da Conquista.
Há pessoas que, quando crescemos e descobrimos que são humanas como nós, passam a ser menos ou pouco admiradas e mais ou muito compreendidas. Exceção a isso, Dr. Ruy Medeiros, pra mim, é um paradoxo: não encontrei nele as comuns vaidades que todos nós temos, e minha compreensão sobre ele também não aumentou muito: continua um mistério compreender como alguém pode fazer tanto em apenas uma só vida, e ao mesmo tempo manter-se íntegro, sem erodir seus princípios.
Eu vou me concentrar em duas das insinuações – ofensas, mesmo – feitas a Dr. Ruy: a de que teria sido movido por interesses econômicos e a que teria feito captação de clientela. Deixo o resto de lado porque, tendo ouvido a entrevista de Dr. Ruy que teria gerado a celeuma, percebo que as agressões vieram do fígado, porque alguma lógica se poderia esperar de algo que viesse de um cérebro, ainda que diminuto. Dr. Ruy diz A, e é acusado de ter dito C, e isso não precisa de resposta longa, mas apenas que se aponte a falácia. Mas as ofensas chamam a atenção porque demonstram que nem para ofender seus críticos possuem algum refinamento.
Poderiam chamar Dr. Ruy de muitas coisas para ofendê-lo: ainda que não fossem verdadeiras as ofensas, poder-se-ia lançar dúvida. Mas, incompetentes até para ofender, escolheram justamente aquilo que notoriamente não se identifica com este advogado: interesse econômico (em seu sentido vil e egoísta) e agir antieticamente.
Quando comecei a advogar no escritório de Dr. Ruy, menos por minha não-tão-promissora competência e mais por ser seu sobrinho – embora ele raramente negasse uma oportunidade a alguém – chamava a nossa atenção – minha e dos outros colegas do escritório – a romaria de clientes pobres, pés quase descalços, cansados e suados que chegavam ao escritório. Muitos vinham na certeza de que seu (dele) trabalho seria gratuito, e quase sempre acabava sendo mesmo. Quase todos chegavam perguntando: “É aqui que é Dr. Ruy, o advogado do Estado?”. A repercussão de seu desprendimento por cobrança e por patrocinar causas dos desvalidos era tamanha que muitas pessoas simplesmente acreditavam que ele não era um advogado particular.
Herdamos, muitos de seus colegas de escritório, algumas dessas causas. Lembro que meu primeiro honorário (não foi bem honorário, foi um presente da cliente) foi um quilo de café moído de uma senhora que ficou grata por termos defendido seu filho de uma injusta demissão, gratuitamente.
Quantas vezes, morto de fome ao meio dia, querendo ir logo pra casa, chegava algum cliente desesperado, e saía Dr. Ruy, me levando junto – ele não dirigia, e eu, recém-saído da autoescola, e faminto, acabava por conduzi-lo – para medir alguma área, olhar algum processo, pegar os dados do cliente, para mais um processo que, economicamente, nada renderia.
Humanamente era impossível atender todo mundo, e Dr. Ruy tentava às vezes recusar uma causa – tentava encaminhar a pessoa à Defensoria Pública, explicava que não trabalhava – como de fato não trabalhava – com Direito Penal, etc., mas quase sempre a causa pro bono ficava no escritório, seja porque Dr. Ruy afinal pegava a causa, por pura compaixão, seja porque pedia a um colega seu para acompanhar o cliente, novamente por puro desprendimento.
Da mesma forma vi Dr. Ruy recusar causas promissoras, apenas por contrariarem seu senso de justiça. Veja: não eram causas desonestas, indignas ou perdidas – pelo contrário. Nenhum advogado estaria desonrado ao patrociná-las, mas Dr. Ruy, justamente por não se mover por interesse econômico, não no seu sentido vil, não as patrocinava se sua consciência assim lhe recomendasse.
Aliás, reza a lenda que um dia, ao ser perguntado por um fiel sobre a razão pela qual o advogado da Diocese era um ateu, o pároco ou bispo teria dito: “Meu filho, Dr. Ruy é mais cristão do que boa parte dos que vão à missa”.
A juventude pode ser bem irresponsável: lembro Dr. Ruy, com paciência, cortando palavras ofensivas de minhas petições, técnico que sempre foi, mas deixando uma ou outra frase apaixonada, sorrindo vez por outra e perguntando se precisava mesmo de tanta eloquência.
Atribuo essas ofensas ou à irresponsabilidade da juventude, lembrando do jovem advogado desaforado que fui no inicio, ou a falta de caráter. Não conheço seus ofensores – um, se esconde sob “a redação”, e o outro, desprovido, obviamente, de competência para contestar Dr. Ruy com argumentos, como se pode ver por sua resposta vaga, descontextualizada e baseada em sofisma. Partiram para uma ofensa pessoal e gratuita, o que desmascara desde já a falta de preparo até para ofender, já que, repito, escolheram a ofensa menos crível possível.
Eu poderia prosseguir aqui com exemplos, caso não se tratasse da pessoa menos ambiciosa no sentido econômico que conheço e de que essa falta de apego ao dinheiro-acima-de-tudo não fosse conhecida por todo mundo. Todo. Mundo. Poderia mencionar o fato de se tratar de um dos advogados mais renomados de Vitória da Conquista, sem, no entanto, ostentar economicamente o que tal estatura obviamente traria consigo. Chega a ser folclórica a imagem do Dr. Ruy caminhando para o fórum, para a casa, sem relógios caros, sem ternos das grandes marcas. Seu patrimônio: livros, filhos formados e educados, diversos profissionais formados ao longo de anos sem qualquer contrapartida de nossa parte.
Algo que não se retira de alguém é o seu caráter. Parte do meu foi forjado por alguém me dizer “não faça isso, Ruy não vai gostar”. Seu rígido senso do dever, não diferente daquele de seu pai, e acima de tudo sua sempre ausente tergiversação com princípios foi, mais do que o Direito em si, o que aprendi em onze anos de advocacia com Dr. Ruy. Um dia espero poder escrever mais sobre o que aprendi com ele.
Para encerrar, sei que Dr. Ruy não precisa de atestado meu – ainda mais sendo alguém de sua família. A sociedade de Vitória da Conquista, por intermédio de advogados, movimentos sociais, políticos e outros trabalhadores já deu sua resposta. Se o faço é porque me sinto no dever de apontar esse desatinado libelo contra ilustre patrimônio que é Dr. Ruy Medeiros para Vitória da Conquista. Infelizmente está na moda no Brasil: agora qualquer pobre de espírito que quer tomar um atalho para não ter de se esforçar, estudar, trabalhar, enfim, ralar para compreender o mundo em sua complexidade, opta ao invés por denegrir aquele a quem jamais alcançará.