Proponho a questão apenas por um exercício de raciocínio. Embora pareça haver um dilema, uma escolha entre dois polos, a aparência é falsa. Há nuances, muitas, que tornam a equiparação da escolha entre o PT e Bolsonaro como sendo entre corrupção e um escroque uma falácia.
Nuances já conhecidas, mas frequentemente ignoradas: se por um lado aplicou-se a pecha de corrupto ao Partido dos Trabalhadores, uma leitura desapaixonada mostra, claramente, que a corrupção era maior em outros partidos (alguns aliados do PT, alguns não – vide lista dos inquéritos abertos contra deputados pela Operação Lava Jato), por outro lado Bolsonaro – bem como seu partido à época, o PP, não eram freiras inocentes. Isso qualquer pessoa com mais de dois neurônios sabe. Essas são apenas algumas nuances: há muitas outras. Acho perfeitamente legítimo que não se apoie o PT por causa da sua aparente inércia (voluntária ou não) em relação à corrupção, mas acredito que a contradição vem quando se escolhe um extremo com histórico ainda mais manchado. No entanto, sempre quando se chega nesse estágio do debate, entram as questões dos valores: Bolsonaro representaria uma certa moralidade de costumes, etc. Veja que eu acredito que o insucesso do PT em relação à corrupção não é porque seus quadros sejam mais corruptos que os dos outros partidos – muito pelo contrário – mas por uma série de fatores: presidencialismo de coalisão, alianças, relações espúrias com o empresariado, etc. – ou seja, muito do que de fato levou o partido ao governo. (Aliás, outro dilema igualmente interessante, ao qual quero voltar em outra oportunidade, é: manter-se sem aliança e não ser eleito, ou ser eleito, ainda que com alianças espúrias, e melhorar a vida das pessoas?)
Novamente, e me alongando mais do que gostaria, não quero entrar na discussão das nuances agora, mas tem outro ponto que me parece interessante: como gente próxima, de cujas intenções e caráter não duvidamos, consegue ainda assim escolher o lado do escroque? Terá sido por causa de anos de corrupção? Terá sido anos de valorização dos “bons costumes” pela ditadura, que, recrudescida em razão da falência desta última, voltou agora por causa do fracasso econômico de 14 anos de governo de esquerda, que ainda por cima era progressista na proteção das escolhas individuais em relação aos costumes? Eu me pergunto isso porque acho difícil que alguém possa achar que o problema da corrupção, embora grave, colocaria o PT em um patamar diferenciado, exclusivo. Deve haver outra causa, ou talvez várias causas contribuam para essa fúria. Ou talvez seja apenas comportamento de manada mesmo, e eu esteja elucubrando demais.
Então, vendo o agravamento dessa defesa do escroque em nome de um suposto medo da corrupção não me parece verdadeiro, mas ainda assim o dilema é interessante: quanto se pode suportar, o que se pode engolir quando se trata da defesa da probidade no sentido econômico?
É esse o dilema que estou refletindo, em abstrato.
Façamos um exercício: entre a escolha entre um governo notoriamente corrupto e um governo opressor, qual a escolha?
Aqui, tomemos apenas o critério da moralidade pública, ou seja, da probidade administrativa.
Entre um governo corrupto e um governo que promove a tortura, a discriminação, a desvalorização da ciência e da educação, da banalização da vida de pessoas doentes, do esgarçamento da democracia, o que deve pesar mais?
Veja que corrupção adquire um peso enorme, muito embora se trate apenas, de forma direta, de uma questão econômica. Trata-se de subtração de recursos. As consequências podem ser nefastas, obviamente, mas de forma imediata se trata apenas de dinheiro.
Mas a tortura, a violência, o desrespeito à ciência, o descaso com a morte, são diretamente relacionados à vida e ao progresso. Devem ou deveriam ser mais claros. Não há país no mundo desenvolvido que não tenha um Estado Democrático de Direito, mas curiosamente existem vários estados desenvolvidos com casos de corrupção no governo.
Não parece preocupante que a corrupção parece, nesse debate, retirar de muitos o apreço pelo que poderia nos salvar, a saber, leis, direitos humanos, ciência, educação e respeito?
Agora pergunte-se: como um governo que desrespeita esses valores que deveriam ser caros a todos, e ainda assim corrupto (vide as rachadinhas dos Bolsonaros, suas suspeitas de superfaturamento na compra de combustíveis, seus laranjais e caixas 2, seu secretário de comunicação, seu nepotismo do filho embaixador, sua intervenção na PF para salvar a pele do filho, etc…) ainda consegue ser visto, por alguns, como melhor do que o PT?
Dia desses, no Facebook, disse a um amigo evangélico que o grande problema dos evangélicos (ou de parte deles, que não se pode deixar o termo ser sequestrado por Malafaias e que tais) foi comprar de Bolsonaro, pagando com apoio, a defesa de sua agenda conservadora de costumes, ignorando todos os outros valores cristãos atacados pelo referido sujeito. Algo meio que “pare os gays que nós te apoiamos”. Isso foi prostituição, mas ainda assim, tomando que nem todos os eleitores de Bolsonaro sejam evangélicos ou incels – o que é que faz aquele cara gente boa ter raiva do PT e amor por Bolsonaro, ainda que o primeiro seja paz e amor, e o segundo apenas terror?
Mas, voltando à dicotomia corrupto-mas-progressista e escroque-conservador-honesto, eu compreendo que a escolha, nestes termos, não é fácil. Então, quando se vê o mundo apenas dessa forma, em preto e branco, talvez se compreenda a escolha. É mais ou menos como aquele sentimento tribal de “bandido bom é bandido morto” que ignora toda construção civilizatória em torno de um processo legal justo, que só se explica através das nuances.
Como podemos, então, criar ambiente para que as pessoas discutam as nuances, sem bilis?